Quantos ‘homões da porra’ são necessários para fazer uma Joni Mitchell?

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A música atual é representada em grande parte por mulheres, do folk ao pop. Mulheres que não apenas performam, mas que escrevem suas próprias músicas e cantam sobre elas mesmas e sobre temas que muito importam em suas vidas – de Joanna Newsom a Cat Power, de PJ Harvey a Kate Bush. Mas, é claro, nem sempre foi assim. Até o meio da década de 60, as grandes mulheres da música popular, por mais virtuosas que fossem, em geral interpretavam canções que outros escreviam. As poucas que escreviam suas músicas lutavam para tê-las gravadas e reconhecidas, e suas obras originais eram muitas vezes relegadas a um segundo plano.

Isso começou a mudar no fim da década de 60, com os movimentos de folk revival. Sob a influência das pioneiras Odetta e Nina Simone, uma leva de cantoras mulheres começou a escrever suas próprias músicas e a abordar os mais diversos assuntos. Judy Collins, Mary Travers, Sandy Denny, e Joan Baez se tornaram conhecidas nesses movimentos e elevaram a imagem das mulheres na música. No entanto, a que mais quebrou barreiras, inovou em suas letras e melodias, se manteve indepentente e influenciou todas as que depois vieram, foi a canadense Joni Mitchell.

Mitchell é e sempre foi uma artista complexa. Sempre manteve controle total sobre sua obra e seus conceitos, escrevendo as letras e as melodias, tocando os pianos e violões, produzindo muitos de seus álbuns, desenhando as figuras e tirando as fotos de suas capas. Notoriamente reclusa, resistente a palpites de produtores e colegas, sem medo de dizer o que pensa, e independente a ponto de teimosia, sua trajetória musical é uma das grandes histórias da música popular do século passado, e seu trabalho vem inspirando milhares de artistas.

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Nascida em uma pequena cidade de Alberta, Mitchell sempre se interessou por pintura e começou a se aventurar pela música quando, aos 9 anos, sofreu com a pólio e começou a cantar no hospital para os outros pacientes. Em 1963, aos 20 anos, se mudou para Toronto para cantar nas ruas e em clubes, e depois acompanhou seu marido para os Estados Unidos, onde pulou de cidade em cidade acumulando ideias e experiências.

Em 1968, morava na casa de David Crosby na Califórnia, quando este resolveu produzir seu primeiro álbum. Já tinha músicas de sucesso emplacadas por outros artistas, e chegara a hora de ela própria cantar suas palavras. Desde o primeiro álbum, Joni mostra sua capacidade de organizar conceitos sutis (perpassa pelo álbum o contraste entre a cidade e o campo) e sua completa independência intelectual. A música que fecha a obra tanto desdenha amantes que querem manter suas mulheres presas quanto o desejo infantil por liberdade sem consequências.

Os dois álbuns seguintes, “Clouds” (1969) e “Ladies of the Canyon” (1970), cimentaram a relevância de Mitchell. Aqui, ela desenvolve seus vocais extremamente expressivos e explora temas e ideias universais de uma maneira única. Fala de como mudamos nossa visão do amor, de doenças mentais, da inevitável passagem do tempo. Une melodias cativantes para gritar ideais ambientais, nos acalma cantando sobre o passar das gerações, nos confunde com composições crípticas. Desenvolve seu gosto por melodias complexas e coloridas, com acordes e harmonias inusitadas (já usou mais de 50 afinações diferentes em seu violão ao longo do tempo), com isso dando pistas da complexidade musical no porvir. Nesse ponto, Mitchell já tinha uma reputação sólida como compositora no nível de Dylan, e vinha mostrando a todos que uma mulher pode enfrentar qualquer tema e elevá-lo às maiores belezas líricas, abrindo o caminho para artistas que viriam.

Nada, no entanto, poderia preparar o mundo para seu próximo álbum.

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“Blue” foi lançado em Junho de 1971. A capa simples mostra Joni cantando, em um tom azul. Quando as primeiras pessoas começaram a tocar aquele vinil, a música mudou. A relação do artista com sua música mudou, e a do ouvinte com o artista mudou. Sem mais barreiras, ou distanciamentos, ou pretensões universais. “Blue” é sobre Joni. “Blue” é Joni. Todas suas inseguranças, suas dúvidas, vontades, experiências. Tudo em primeira pessoa, tudo em primeira mão, nada de falar sobre o amor em geral, aquele é o amor

dela. Nada de contar belas histórias de terceiros em suas letras, aquele era seu diário, era o que tinha acontecido com ela. Falou sobre seu relacionamento com Graham Nash, sua viagem à Europa, e sobre o bebê que ela teve que dar à adoção por não ter condições de cuidar. Imagine isso! Imagine a artista se abrir tanto que não tem medo de falar sobre uma experiência dessas! Ali, Joni se expôs, foi vulnerável e forte nessa vulnerabilidade, foi sincera, quis amor mas admitiu seus erros, pediu perdão por suas besteiras mas não negou que seus erros são parte dela, sentiu saudade e esperança no futuro.

Ninguém havia feito isso. Antes, as canções recorriam a um lirismo para criar distanciamento, eram histórias sobre terceiros para o artista não se colocar na linha de frente. Joni mudou isso para sempre. Daí para frente, e até hoje, os artistas gritam seus problemas, mostram seu interior, e mostram isso para o público. Com a extrema intimidade e pessoalidade do álbum de Joni, ela alcançou algo incrível: despertou – e ainda desperta – a empatia em todos que a ouvem, chegou no universal através do íntimo, chocando e inspirando muitos no processo. Mitchell foi feroz, corajosa e independente ao fazer isso, e criou a mulher forte, independente, abrindo espaço para todas as Patti Smiths ou Stevie Nicks do futuro.

Seguindo esse trabalho, Joni resolveu explorar seu desejo por nuances musicais e rítmicas, trazendo o seu piano para o foco em “For the Roses” (1972), álbum em que ela tratou dos problemas e confusões que a fama lhe trouxera, e ainda ridicularizou a vontade das produtoras por músicas simples que seriam fáceis de levar ao rádio. O álbum seguinte “Court and Spark” (1974) se mostrou uma surpresa, pois Joni se afastou de sua sonoridade folk original, indo para experimentos com hard rock, blues, e jazz. Sobre esse álbum, Madonna (sim) disse que “conhecia cada palavra” e que Mitchell foi “a primeira artista a realmente ressoar em mim”.

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Mitchell continuou a seguir novas sonoridades com “The Hissing of Summer Lawns” (1975), onde abordou temas diversos como a opressão do cotidiano das mulheres, as contradições da arte, e o sofrimentos de gerações passadas. Em “Hejira” (1976), Joni se voltou totalmente para o jazz, mostrando sua versatilidade artística ao se encaixar magistralmente no estilo, que continuou seguindo em “Don Juan’s Reckless Daughter” (1977) e “Mingus” (1979). Este último foi em colaboração com Charles Mingus, que a tinha ouvido e a convidou para trabalhar juntos, e foi o último álbum lançado pela lenda do jazz.

Continuou produzindo nos anos 80, explorando sonoridades por vezes mais pesadas, por vezes mais comerciais. Até incorporou sintetizadores em sua música, algo que não agradou a todos. De qualquer forma, seguiu seu caminho, mesmo que arriscado, como sempre fez. Nos anos 90, lançou “Turbulent Indigo” (1994), que mostrou que mesmo após uma década estranha, Mitchell ainda estava afiada e sua visão do mundo clara como nunca. Lançou regravações jazz de suas canções folk, com sua nova voz, grossa e rouca (seguindo em sua teimosia, ela se recusa a admitir que as mudanças na sua voz se devem a seu hábito de fumar – que ela conserva há mais de seis décadas). Em 2007, lançou “Shine”, um inesperado álbum de originais, e que, ela afirma, é seu último.

Joni está aposentada. É uma senhora pacata e reclusa, que sofre de problemas mentais e, em 2015, sofreu um aneurisma. No entanto, seu legado continua vibrante como nunca. Hoje em dia é difícil imaginar como era a música antes de Joni. Antes dos artistas cantarem sobre sua intimidade – tantas das maiores músicas da atualidade tratam de temas como vício, alcoolismo, sexo, inseguranças, tristeza, experiências de abuso. Nada disso seria possível sem Joni, sem sua coragem. Pensemos no papel em que as mulheres têm na música hoje, não só como as grandes divas mas como artistas completas capazes de crias suas próprias letras, suas próprias melodias, sua própria beleza. Nada disso seria possível sem aquela jovem canadense que não teve medo de ser jogar no mundo, de falar o que queria, e assim cativar ao público e mudar a música.

A lista de artistas que já se declararam influenciados por Mitchell é imensa. Cat Power, Björk, k. d. Lang, Prince, Alanis Morissette, Tori Amos, Diana Krall, Chrissie Hynde, Jewel, Surfjan Stevens, Caetano Veloso, Patti Smith, Aurora, Ellie Goulding,  apenas citando alguns.

Ela é a única mulher dentre os quatro tradicionais titãs da composição folk moderna, junto com Bob Dylan, Neil Young, e Leonard Cohen – artistas esses que já afirmaram admirar Joni e serem influenciados por ela. “Blue” é visto como um dos maiores álbuns de todos os tempos, e vem sendo reconhecido como o maior produzido por uma mulher. Joni mudou o mundo, e o mudou apenas sendo sincera sobre quem ela é.   Termino essa apresentação com uma das fotos mais recentes de Mitchell, tirada este ano no baile de gala dos Grammys. Espero que consigam admirar a beleza dessa senhora que viveu como ninguém. E também espero ter despertado a curiosidade de conhecer e admirar a obra dessa artista fundamental e única na história da música.


Essa foi minha estreia aqui no site, e espero que tenham gostado! Peço que mandem feedback sobre o texto, um comentário, um e-mail, qualquer coisa, com o que foi bom e o que posso mudar. Tenho vontade de seguir com textos como este, que “apresentem” artistas e sua obra – quero falar Bert Jansch, Shirley Collins, Jackson Frank, Joanna Newsom. Também quero fazer textos de análises de álbuns, como os da Joni citados no texto. Mandem-me mensagens sobre o que acham dessas ideias, por favor! Para vocês que chegaram até aqui, meu sincero obrigado <3.