Woody Guthrie não se enganou: jornalista fala da relação do ícone folk com os Trump

por

Estava vagando pela web quando encontrei esse texto, originalmente postado no dia 27 de agosto, no Diário de Notícias, de Portugal.

Nele, o escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria, emite sua opinião de maneira primorosa sobre a relação do ícone folk Woody Guthrie com a família Trump. É um pedaço da história que vale a pena ser transcrito aqui. Eu inclui imagens e música para contextualizar melhor.


woody_guthrie_nywtsWoody Wilson Guthrie, mais conhecido por Woody Guthrie, foi o mais destacado criador norte-americano de música folk, com uma reconhecida e decisiva influência em Bob Dylan e nos restantes nomes dessa corrente musical. Ficou famoso também pelo facto de trazer um colante na sua viola que dizia ‘This machine kills fascists’ e por ter deixado às gerações futuras canções como “This Land Is Your Land” (que nunca prometeu que se tornasse “outra vez grande”).

Guthrie nunca gostou dos Trump, até porque conheceu a visão que Fred Trump tinha dos negros nos seus blocos de apartamentos em Nova Iorque, afastando-os em claro benefício dos brancos.

Woody Guthrie foi um incansável viajante, escreveu o livro autobiográfico Bound for Glory, que deu origem a um filme com o mesmo nome, foi casado três vezes e teve oito filhos, um dos quais é Arlo Guthrie, um dos mais influentes intérpretes da geração folk a que pertence Bob Dylan.

Nascido em Oklahoma, conheceu a privação, a doença e a miséria, acabando por morrer em Nova Iorque em 3 de Outubro de 1967, vítima da doença de Huntington. Parte da sua família morreu de forma trágica, caso da irmã Clara, que pereceu num incêndio, e do pai, que ficou gravemente ferido num fogo ocorrido posteriormente. A mãe, Nora, foi atingida pela mesma enfermidade. Nos últimos anos de vida, Woody Guthrie esteve impossibilitado de tocar viola por ter ficado com um braço ferido num acidente.

No início dos anos 50 do século passado, o cantor vivia num grande complexo residencial propriedade do empreiteiro Fred Trump, pai do actual presidente dos Estados Unidos. Não gostou da forma como os brancos eram favorecidos em detrimento dos negros e sabe–se que chegou a escrever uma canção intitulada “O Velho Trump” (veja letra aqui e ouça abaixo uma versão com artistas contemporâneos), denunciando o que sabia ser errado naquela prática empresarial marcada pelo preconceito racial. Dizia o cantor nesse tema que em Beach Haven, a torre de Trump, não havia negros a vaguear.

O pai Trump tratou de entregar a liderança do produtivo negócio familiar ao filho Donald. O Departamento de Justiça chegou a apresentar, em 1973, uma queixa contra pai e filho, acusando-os de se recusarem a negociar os arrendamentos com negros. O filho assumiu a defesa dos interesses familiares e colocou a defesa nas mãos de Roy Cohn, um advogado que trabalhara com o senador Joseph McCarty na perseguição aos comunistas em Hollywood.

Donald Trump logo tratou, à sua inconfundível maneira, de atacar o governo, afirmando que ele conduzira um inquérito inspirado no estilo da Gestapo.

O actual presidente dos Estados Unidos passou a vida envolvido em querelas e processos desta índole, o que se reflecte no seu comportamento pessoal e político em termos globais. Nunca agiu ou pensou de outra forma. O que hoje acontece nos Estados Unidos e que alimenta a imprensa de todo o mundo devido à truculência que caracteriza aquele comportamento e o pensamento do presidente é apenas o reflexo de uma vida inteira a ajustar contas com o mundo, com a diferença e com os valores da própria democracia.

Woody Guthrie, que esteve perto dos comunistas mas nunca aceitou filiar-se no Partido Comunista do Estados Unidos, percebeu bem com quem estava a lidar e o perigo que resultava de não denunciar uma prática racista na Nova Iorque de meados do século XX. Escreveu uma canção que dizia o que tinha a dizer. Morreu doente e pobre na década seguinte, mas a sua “máquina de matar fascistas” colocou a família Trump num lugar de que é muito difícil sair na memória de um país livre e democrático.

Quem fecha as portas a negros e as outras minorias étnicas em blocos de apartamentos também arranja campos para os isolar, enfraquecer e atacar. O tempo se encarregará de dizer como tudo isto irá acabar.