“Alucinação”de Belchior: Folk, brasilidade e função social

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O filósofo, historiador, sociólogo e revolucionário – entre tantos outros atributos – Karl Marx (1818-1883), foi a “Mãe Diná” do Capitalismo. Escreveu obras poderosas, dentre elas “O Capital” um conjunto de livros que apontava a destruição em massa que o modo de produção capitalista traria à sociedade, à cultura e à vida dos proletariados, entendendo que a supremacia do processo industrial viria a esmagar a mão que movimentaria esta engrenagem. Perdão pela comparação bem humorada e redutiva, mas “Mãe Diná” foi utilizada aqui apenas para ilustrar que em um outro século, Marx já previa o futuro que vivemos no presente.

Já Henry David Thoreau (1817-1862) – poeta, naturalista, também filósofo – escreveu um ensaio intitulado “A Desobediência Civil” em 1849, uma crítica bem construída contra o governo, o poder, onde também aponta o quanto não há como escapar da desonra quando um indivíduo compactua com o governo, fala sobre “maioria versus minoria”, sobre a falta de anseio do povo por revolução e acredita que a consciência deveria estar acima do poder.

Um Alemão e um Americano, separados pela distância e aproximados por algum aspecto social que de certa forma, era comum em suas falas.

Distante dali, em 1976 (período em que o Brasil estava aprisionado pela ditadura militar), um jovem de apenas trinta e três anos compunha letras que pareciam ter saltado de um diálogo imaginário com Marx e Thoreau: revolução, liberdade, consciência política, sociedade, novos ideais… O jovem era o cearense Antônio Carlos Belchior, e as letras com tamanha reflexão entrariam no disco intitulado “Alucinação”, lançado pela PolyGram (selo Phillips). Porque a gravadora consta neste texto? Ditadura militar. Lembra? Qualquer letra poderia ser censurada e, neste caso, a gravadora demonstrava pulso firme ao lançar um disco que falava entre outras coisas, sobre as desilusões sociais de uma época.

Pois bem, com esta pequena contextualização, a intenção aqui é exaltar um dos mais importantes discos nacionais não só para a MPB, mas para o Folk brasileiro. Devo antes dizer, que admiro a todas as pessoas mais jovens que entendem e consomem a música popular brasileira. Comigo aconteceu quando eu já estava beirando os trinta. E até hoje – ainda estou na casa dos trinta, quase chegando aos quarenta – me parece, que a riqueza musical, intelectual e o caráter plural da MPB, será sempre melhor absorvido pós trinta anos, quando já temos estofo mental e experiências vividas o suficiente para a entender a brasilidade das coisas. Agora, presentemente, eu consigo compreender um disco como “Alucinação”, embora, se vivo (Belchior faleceu em 2017 no Rio Grande do Sul), eu ainda não teria a capacidade de dialogar pessoalmente com o cantor: seria apenas escuta.

Não queria – mas preciso – lembrar que na época em que “Alucinação” foi lançado, Bob Dylan já estava no auge nos EUA, com o seu folk de protesto, e inclusive, já havia lançado um de seus discos mais importantes, mais de 10 anos antes, “The Freewheelin’ Bob Dylan” em 1963. Muitos críticos vão mencionar Dylan na obra de Belchior. E cá não estou, a fazer qualquer comparação de grandeza, pois penso que a arte não está para ser julgada dessa maneira.

Embora o folk construído por Belchior, aparentemente não pareça ter raízes exatamente caipiras e sertanejas (falando em Brasil), mas na música regional nordestina como perceberemos em algumas canções. Talvez seja por conta de uma sonoridade diferente e pela forma como narra as histórias, que em alguns momentos Belchior remeta a Dylan, e gosto de pensar que isso também deve-se ao fato de Bob ser um artista da vanguarda, e não porque o que vem “de fora” seja melhor do que produzimos aqui em nosso país.

A sonoridade do disco “Alucinação” abraça o violão, a viola, o violão de aço (steel guitar), a percussão, baixo, bateria, guitarra, gaita e até sintetizadores. A estrutura das letras do álbum é singular ao canto de Belchior. As divisões não apresentam obviedade. O disco já começa com “Apenas um rapaz Latino Americano”, canção que quando pensamos em discos do ponto de vista comercial, estaria lá pela faixa 3, posição que geralmente os “singles” ocupam. Abre o disco com harmônica, violões de aço, coros e uma letra que começa a desenrolar o aspecto social em que se encontrava na época: “sem dinheiro, sem conhecer pessoas importantes e vindo do interior”. É a transição do campo para a cidade, as possibilidades que a cidade grande aponta. E a identidade levantada como bandeira: Soy América Latina!

Importante ressaltar, que o compositor estava a falar sobre a vida em sua crueza, sem pó mágico, sem enfeitar. Portanto as letras são ásperas e muitas vezes incômodas. “Sujeito de sorte”, foi sampleada pelo cantor Emicida em seu último trabalho intitulado “AmarElo” de 2019 e reacendeu a procura por Belchior. Quando ele versa “…tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”, ele clama por esperança, crendo que Deus é brasileiro e anda do seu lado. A canção traz até um “triângulo”, instrumento bastante utilizado no forró e presente em outras canções do disco.

Voltando à desobediência civil, “Como o diabo gosta” incita: “…e a única forma que pode ser norma, é nenhuma regra ter. É nunca fazer nada que o mestre mandar, sempre desobedecer, nunca reverenciar”. E tinha a tal da ditadura, só para não esquecermos. Além disso, como fã do Eddie Vedder (Pearl Jam), fico abismado com o quanto esta música remete a trilha sonora que Vedder compôs para o filme “Na Natureza Selvagem” que trata sobre a fuga da sociedade manipuladora através do protagonista Christopher McCandless. Teria Eddie escutado Belchior? Seria lindo saber que sim.

Vamos falar de Folkzão? “Não leve flores” e “Antes do fim” tem a estrutura típica folkiana, a primeira ainda traz um acordeon e a segunda finaliza o disco com um sopro de gaita em uma canção meteórica com menos de um minuto. Ambas soam folks e nordestinas ao mesmo tempo, afinal em Belchior batia um coração brasileiro, disposto a pulsar valores. Obviamente, a gaúcha Elis Regina (1945-1982), é figura presente na obra de Belchior, pois regravou e tornou suas as canções “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida”. A primeira, já esgotou as possibilidades dos clichês, de tantos outros músicos tentarem dar “a sua cara” com novas velhas versões (eu prefiro a versão original Belchiorana). Já a segunda, no disco “Alucinação” é boa demais, com exceção da batida inicial e leve sintetizadores que me incomodam um bocado e servem como uma cola que grudam os versos, a ponte e o refrão desnecessariamente. “No presente a mente e o corpo é diferente e o passado é uma roupa que não nos serve mais”, sugere um diálogo sobre as mudanças dos tempos.

O disco tem um pé no brega, aqui ou ali, a sonoridade de “A Palo Seco” está lá para comprovar. Mas a letra, ahhh a letra provocativa, que põe o pé no chão da vida real, que dissolve os sonhos utópicos, é mais um dos pontos altos do álbum: “…mas ando mesmo descontente, desesperadamente eu grito em português…eu quero que esse canto torto, feito faca corte a carne de vocês”. Uma chamada para acordar, para ver se ainda está sentindo, se não se está anestesiado por sonhos em bolhas que nunca vão estourar.

Voltando as transições, “Fotografia em 3×4” vai contar a sua história, a descida do Ceará para a grande São Paulo, as dicotomias, os contrastes, a cidade grande que engole e que cospe, que faz revistas, que escolhe alguns e outros deixa a dormir nas ruas. Política social, onde está você?

Para finalizar, a canção título “Alucinação” tem a mais bela composição do disco: “A minha alucinação é suportar o dia a dia. E meu delírio é a experiência com coisas reais”. Uau! Poderia parar por aqui, mas ainda há mais. Há este desejo de parar de pensar e agir, porque há muito a fazer, há uma ânsia por movimento, em deixar as alucinações psicodélicas de lado, sem fantasias vamos falar da vida cotidiana, vamos transformar: “Amar e mudar as coisas me interessa mais”. A empatia é uma forma de amor, estender a mão é uma forma de amor, cuidar da vida é uma forma de amor, ser consciente é uma forma de amar o outro.

“Alucinação” é um disco que trata a música como função social. E a função social da música é promover debates e reflexões, é colocar nos holofotes os problemas que estão escondidos atrás das cortinas, é ser voz daqueles que não possuem o seu lugar de fala na sociedade (“um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha”), é criticar politicamente, é construir diálogos possíveis, sem ser um insulto gratuito. A função social da música, obviamente será traçada através da perspectiva pessoal de quem constrói a narrativa. Por isso este disco é tão importante, porque ele cumpre este objetivo social, com uma fala que comunica o seu ponto de vista através de sua história pessoal de forma coerente e que chega até a multidão onde há uma identificação direta com várias outras histórias.

Tenho consumido este disco como alimento nos últimos dias, não consigo parar de ouvir, repito várias canções, caço informações. Como é bom saber que tamanha obra é brasileira, criada por uma mente brasileira, carregada por um corpo brasileiro, cantada por uma voz brasileira e deixada por uma alma brasileira. Ao Belchior, todo o meu respeito.

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