Marcus Mumford: abrindo a caixa das coisas escondidas

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O disco solo do Marcus Mumford lançado em 2022, chamado “Self-Titled”, explodiu com a
minha cabeça. É bem verdade que discos anteriores de sua banda Mumfords & Sons já eram
visita rotineira aos meus ouvidos, mas nada se comparou ao sentimento que se conectou de
imediato às músicas desse álbum, quer dizer, às histórias que ele está contando.

Esta resenha, portanto, irá costurar memórias pessoais minhas com os assuntos abordados por
Marcus durante as sessões terapêuticas, como costumo chamar algumas canções pontuais do
disco. E não vou me atrever a falar de cada uma das dez canções que compõem “Self-Titled”,
caso contrário esse texto ficaria interminável e estamos na Era de produções rápidas e
objetivas, o que infelizmente, já antecipando as minhas desculpas, também não irá acontecer.

Mumford foi abusado sexualmente aos seis anos de idade por um amigo da família. Ele
precisou de trinta e cinco anos para compreender, tratar e falar abertamente sobre esse caso,
buscando a cura para esse trauma de infância. O abuso sexual que estatisticamente está em
sua maior parte ligado ao sexo feminino, quando ocorre com homens, meninos-crianças, é
ainda mais difícil de verbalizar. Resultado de uma sociedade patriarcal e machista que está
impregnada ao nosso DNA desde que nascemos: o homem não pode chorar, precisa esconder
as fraquezas, ter um posicionamento masculino heteronormativo que é o correto a ser
seguido, entre tantas outras armadilhas que recebemos como herança histórica.

Como então, um menino, uma criança, contará às pessoas que foi molestada, violentada
sexualmente, por outro homem?

Sem rodeios, Marcus abre o disco com “Cannibal” onde relata com frieza o que aconteceu:

“Eu ainda sinto o seu gosto e odeio isso. Não era uma escolha na mente de uma criança e você
sabia disso. Você pegou a primeira fatia de mim e comeu cru. Rasgou com seus dentes e seus
lábios como um canibal, seu animal maldito.”

E toda essa porrada no estômago é cantada com uma certa sutileza de quem quer que o ouvinte grude os ouvidos e preste atenção. São dedilhados densos no violão que acompanham a sua voz. Em outra parte, ele desabafa:

“[…] quando comecei a contar, foi a coisa mais difícil que eu já disse em voz alta. As palavras
ficaram presas em minha garganta. Cara, eu engasguei. E esse foi o sentimento de sentir-se
livre…encare o escuro comigo”.

Nesse ponto, o ouvinte já consegue ter a total compreensão do que ele está contando. Em sua
entrevista para a Apple Music, ele revelou ao Zane Lowe que esse disco é sobre liberdade e
cura, mas que para chegar até essa parte antes foi preciso enfrentar as partes mais
complicadas desse processo. E ainda disse, que começar o álbum com “Cannibal”, foi preciso
para não cair novamente na tentação da negação e que provavelmente se o ouvinte
conseguisse superar o que ele canta na primeira canção, conseguiria chegar em partes mais
divertidas do disco depois.

Os dedilhados mansos e densos de violão da música, mudam abruptamente aos 3:02 minutos
quando uma bateria e batidas frenéticas no violão mudam completamente o compasso,
enquanto Marcus grita suplicando se o abusador pode o ajudar a saber como recomeçar. A
batida acelerada parece propositalmente composta para que o corpo se mova, se debata, se
livre daquele sentimento, de como conseguir perdoar esse fato e seguir adiante.

Eu queria abraçar o Marcus e chorar junto com ele, eu queria sentar e contar que passei pela
mesma situação.

Em 2020, publiquei um livro autoral intitulado “A Transparência do Sentir”. Era uma
compilação de vários textos que eu havia escrito até então e que perpassavam por histórias
familiares, emocionais e certos devaneios. Talvez eu não tenha sido claro o bastante em um
dos textos chamado “A caixa das coisas escondidas”. O texto abordava esse tema o qual todos
preferem desviar o olhar ou mudar de assunto ao ouvir alguém contar: abuso sexual. Talvez,
eu o tenha escrito de uma maneira que acabou escondendo o fato nas entrelinhas, mesmo
que eu quisesse expor o óbvio. Talvez por isso, das centenas de pessoas que leram o livro todo
e que enviaram mensagens, apenas uma ou duas delas tiveram a coragem ou abertura de falar
sobre esse assunto comigo.

Em síntese, o que eu relatei naquele texto, e que se assemelha a experiência de Mumford, foi
o olhar em retrospecto de um adulto de mais de trinta anos, compreendendo que quando
criança, havia sido abusado entre os seis e onze anos de idade, talvez um pouco menos e um
pouco mais, por um amigo nove anos mais velho.

Durante anos, eu pensava que todos aqueles fatos, eram normais. Aconteciam porque quando
crianças, a grande maioria de nós – principalmente do sexo masculino – temos a sexualidade
aflorada e que a grande culpa a ser escondida, era porque acontecia com outro menino e não
com uma menina ”como tinha de ser”. A tal negação que Marcus mencionou não querer mais
sentir. Mas de alguma maneira, eu sentia que esses episódios de sexualidade, eram diferentes
com esse amigo mais velho, elas não se enquadravam nas “curiosidades de descoberta da
libido”
infantil.

Porém, como eu me sentia estimulado e gostava desse estímulo, eu associava aqueles fatos
como responsabilidade minha (culpa). E observando relatos de pessoas que sofreram abusos
independentemente da idade, vi que esse era um comportamento recorrente. Estudos
comprovam que ainda não temos capacidade cognitiva apurada para discernir a escolha de
sermos estimulados sexualmente quando crianças mesmo que em nossa cabeça, pensamos
estar consentindo. A idade de um pequeno provável entendimento sobre estar agindo certo
ou errado, pode variar dos onze aos catorze anos. Mas é o adulto que sabe exatamente
distinguir um consentimento apropriado para um não apropriado.

Por isso esse disco mexeu tanto comigo emocionalmente, porque eu consigo fazer parte de
alguns dos sentimentos expostos pelo vocalista e eu também passei grande parte da vida
negando a mim mesmo que o que havia acontecido comigo, tratava-se de moléstia sexual.
Uma das consequências desse trauma do passado que eu escondia até de mim mesmo, foi que
passei a desenvolver pensamentos sexuais intensos viciosos que chegavam a perturbar o meu
sono e o meu dia. O vício de pensar em sexo em quase tempo integral, fazia com que a minha
libido explodisse, mas que de certa maneira eu me sentisse culpado e desconfortável com isso
e reprimisse esses desejos. Em relação as consequências vividas pelo músico, ele comenta que
a terapia o ajudou muito.

Nesse processo de libertação de Marcus Mumford, ele ainda teve a árdua tarefa de responder
à sua mãe sobre o que exatamente ele estava contando em “Cannibal” e deixou ela saber pela
primeira vez que uma pessoa que parecia ser do círculo de confiança familiar, aproveitava-se
dessa situação justamente para atacar. E depois disso surgiu “Grace” a segunda maravilhosa
faixa do disco que foi composta cronologicamente após “Cannibal”, em uma espécie de alívio
por ter contado sobre o segredo e assim tirado o peso que carregava no corpo por conta disso.

“Bem, como devemos prosseguir? Sem as coisas ficarem muito pesadas. Mesmo que eu nunca
tivesse te contado tudo, eu poderia jurar que eu já havia jogado a bomba em você”.

“Grace” surge um pouco mais solta, mais leve: “Graça, como um rio…”, como um rio que vai levando
tudo o que não foi bom. Em entrevista para o “The Current”, Mumford falou que “Cannibal e
Grace” são uma espécie de “par de canções”, como Yin e Yiang – como forças opostas que se
complementam. O significado de “Graça” na música tem a ver com abundância, cura: “Eu acho
que estava esperando a oportunidade de começar de novo, isso é “graça” para mim.”
Reforçou.

Já em “Only Child” a conversa ressurge em tom melancólico e o passado é colocado de novo
em perspectiva. Violão e voz ecoam: “Eu estive me escondendo de todos os lugares onde
estive, e tentando dolorosamente e agindo como um filho único”
. Aqui ele assume estar agindo
com as características que geralmente um filho único age. “Eu estava tentando ofender todos
os filhos únicos que eu pudesse”, brincou com o apresentador da Rádio 101.9 KINK. Essa
canção foi composta por ele e Blake Mills um dos colaboradores do disco, tempos antes de
“Self-Titled” ganhar a forma de um disco. Aliás a controvérsia desse álbum é que mesmo sendo
um disco solo, ele está cheio de colaboradores, incluindo a presença de algumas mulheres que
cantam algumas de minhas músicas favoritas.

A trinca final de músicas começa com a linda balada “Go in light” em um feat com a cantora
Monica Martin, até então desconhecida para esse que vos escreve e que integrava uma banda
indie folk chamada Phox mas atualmente faz um trabalho solo. “Go in light” é daquelas
canções para deixar no repeat por horas: “Aqui nos meus sonhos mais loucos, nós somos os
únicos acordados, as memórias param e você chama meu nome: entre, entre na luz.”
Marcus
foi adentrando a luz após ir contando sobre o seu trauma.

E então ele chama a Phoebe Bridgers e os dois cantam juntos uma espécie de oração do disco
“Stonecatcher”:

“Quem sou eu? Divagando no meu reflexo na luz do retrovisor, seguindo um
estranho, rezando por uma luta ou pela força de voltar a ficar de joelhos novamente. Esta luz
neon brilhante no canto de minha mente, queima e queima mas não deixa o calor para trás, eu
gostaria que você tivesse feito isso no escuro. Oh meu Deus, estamos aqui de novo…”

Um diálogo com suas lembranças e com Deus, quando memórias sombrias e recorrentes do
passado ressurgem.

Para finalizar o disco, depois do gráfico emocional subir e descer entre lembrar e esquecer do
abuso que sofreu e todas as sensações que ficaram impregnadas em suas células, Brandi
Carlile
, que o encorajou a continuar com o disco após ele inicialmente mostrar a ela o duo
“Cannibal e Grace”, o acompanha na dolorosa “How”. Com uma letra tão crua quanto a faixa
que inicia o disco, porém agora Mumford se apropria de sua história com o sofrimento que
guardou por tanto tempo sem contar a ninguém e escreve uma espécie de carta aberta ao
abusador:

“Eu me perguntei o que foi feito com você, para te dar tal gosto de carne. Eu acho que por anos
eu apenas continuei, não senti muito a escolha de acabar com isso. Espero que a sua memória
seja menos vívida do que a minha e nem lembre daquela terrível luz do plátano. Eu tenho que
dizer que ainda preferia que você tivesse feito isso no escuro, assim as fotos não ficariam tão
brilhantes.”

Quando ele repete a mesma frase dita na canção anterior “Stonecatcher”, “Eu ainda preferiria
que você tivesse feito isso no escuro”, supomos como ouvintes que o abuso sofrido foi a luz do
dia e mais do que isso, sem o adulto esconder daquela criança o que gostaria de fazer. A
lembrança de Marcus da “terrível luz do plátano”, aparece nas traduções como “luz de bordo
(maple lights)”
, que sugere um navio, porém, mais a frente ele fala novamente sobre “maple
trees”
, o que sugere que o abusador o levou perto de alguma árvore (o plátano é da família
das plantas bordos, mais comuns no Canadá sendo exemplo mais próximo para entendimento
em português). A luz relacionada aqui pode ser do sol entre as folhas, o abusador agir
enquanto aponta para que ele veja as folhas, enfim, suposições.

Na penúltima parte ele diz: “Eu havia contado com o que você tirou de mim e eu matei aquele
mentiroso em minha cabeça. Eu o enterrei embaixo da árvore de plátanos [mas] não há alegria
em dançar com os mortos.”
Verso forte e poderoso mostrando o sentimento pesado que
Marcus guardava em seu interior, indagações sobre o que fazer com aquela história, com seu
trauma e com o abusador.

“Mas eu te perdoarei agora, te liberarei de toda a culpa que eu conheço. E eu te perdôo, sabe,
se eu disser essas palavras, elas me ajudarão a saber como. Como…como.”
Porrada no
estômago. Começar a exercitar a palavra perdão para que de fato ela funcione na prática,
encontrando uma estratégia mental que o faça descobrir como se perdoa o abusador que
causou tanto sofrimento para aquela criança, aquele adolescente, aquele adulto que foi ele. As
lembranças andaram junto com ele em seu período de formação como individuo, podem ser
motivos para crises de ansiedade ou depressão, podem ser motivos para medos, negações,
mas simplesmente não deveria estar servindo de motivo algum pois nunca poderia ter
acontecido.

Eu ainda continuo querendo abraçar o Marcus Mumford. Mas sempre observo atento as
entrevistas e a leveza que ele se encontra após contar sobre esse episódio, inclusive como sua
postura corporal mudou e também a maneira como psicologicamente, talvez com muita ajuda
terapêutica, ele aborda esse tema o qual escondia até de si mesmo com naturalidade e sem
cair na armadilha do vitimismo. E há ainda uma fala dita por ele em uma dessas entrevistas,
em que ele comenta que foge da palavra “corajoso” quando alguém o elogia dessa maneira,
pois ele acredita que quando alguém que denuncia um abuso é chamado de corajoso acaba
deixando aquelas pessoas que sofreram abuso e ainda não contaram sobre esse fato em uma
situação difícil, pois às vezes, o falar está apenas esperando a oportunidade certa. Na
oportunidade que ele considerou correta, ele abriu ao mundo essa caixa através de “Self-
Titled”.

As músicas desse disco são na verdade, poderosas e profundas versões poéticas da realidade.