Miguel Rosa reinventa a sua narrativa em português e o resultado é o alinhamento completo dos astros
por Cléo Medeiros
Muitos cantores brazucas seguiram a linha da composição em língua estrangeira, caso de Miguel Rosa, catarinense de coração e bauerense por natureza. A opção pelo inglês aconteceu naturalmente para o músico, que já explicou que a língua inglesa cabia perfeitamente no tipo de som que ele compunha. Lançou em 2014 o seu primeiro EP #1 e, posteriormente, o EP “Easy Folk” totalmente em inglês. Pelos streamings ou em seu canal no YouTube, você ainda encontra álbuns gravados ao vivo “Songbirds Festival at casa 97” e “Ao vivo no Teatro” além de alguns outros singles.
Pois bem, em sua nova aventura pessoal, Miguel Rosa aposta em suas primeiras canções em português e, mais do que isso, acerta em cheio a mão. Em ordem cronológica, “Mulungu” e “Castelo Coração” foram lançadas e atingiram os ouvidos mais atentos, com uma poesia simplista, uma metáfora aqui ou ali e uma boa dose de lirismo. Vamos então, explorar um pouco mais as letras, dissecando partes e nos permitindo um certo devaneio.
MULUNGU:
[[“Já tentei, já tentei mulungu, já tentei camomila, já tentei mulungu com camomila…O meu sono sem calmante, tá em perigo…”]]
A primeira coisa a ser dita é que “Mulungu” é uma planta medicinal, com um certo efeito sedativo, calmante, assim como a camomila. A escolha do título, não poderia ser melhor, pois ao iniciar a canção falando sobre “chás calmantes”, ele ameniza o seu estado mental para não falar diretamente que está precisando de medicamentos para dormir. A letra que parece tão simples esconde na calmaria um problema vivido por muitas pessoas, a insônia seja desenfreada por problemas emocionais, no seu trabalho, nas suas relações. É um verso disfarçado em uma pequena crônica do cotidiano retratando muito da sociedade em que vivemos.
[[“É só silenciar, que o silêncio vem…”]]
Quando estamos submersos a estados emocionais avassaladores, precisamos de pausa. Precisamos colocar a mente barulhenta para respirar. Lembrei daquele verso lindo do poema/canção “Metade” de Oswaldo Montenegro “Metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio”, há um dualismo sagrado implícito aqui. Silencie seus pensamentos, permita-se esta pausa.
[[“Esse sonho que é constante, admito, me arremessa, me ancora, e eu cicatrizo. Pulo na cama nossa ceia, é pra esbanjar. Tiro o chapéu, e o sol bronzeia a gente aqui. E toca a pele sem a meia…”]]
Se não há mais ninguém em que ele pense mais, ele sonha com essa intimidade imaginada. Há que se ter um certo cuidado aqui. O escritor alemão Ludwig Borne já avisava: “Perder uma ilusão nos torna mais sábios do que encontrar a verdade”. Muitas vezes em nossas paixões, ficamos estagnados dentro da bolha. A percepção daquilo que nos alimenta é uma boa aliada se está nos nutrindo de forma saudável ou destrutiva.
[[O fato é que eu perdi, muito de mim lá trás. Choveu, mas já secou, eu quero sol depois… A vida que eu vivi, o quanto eu me abalei. Não sou tão forte assim, mas o coração vai bem.”]]
Gosto demais deste verso. É um olhar em retrospectiva, uma autoanálise sobre tudo o que ele sentiu. Todas as camadas, todas as cascas, a calmaria pós tempestade. A mente retornando a seu estado natural, a sanidade batendo a porta (haja chá de mulungu para tanto). No coração fez-se paz.
CASTELO CORAÇÃO:
[[“Não te contei que tô fazendo, terapia e regressão. E que a demanda tá aumentando, tô evitando confusão. PRA ME CURAR, pra renascer maior.]]
Os processos de cura pelos quais vamos passando em diferentes estágios de nossa jornada, nos fortalecem. O primeiro passo para a chave da mudança é querer mudar. É uma busca constante para nossa evolução emocional e espiritual. Nos descontruir para reconstruir. Este primeiro verso, abre as portas para o entendimento da vida em diferentes espectros.
[[“Eu apostei que esta queda livre, vale a cicatriz. Fui me despindo de mim mesmo, pele nua sem verniz. Eu mergulhei, chorei pra rir…”]]
A vulnerabilidade pode ser vista como uma força enorme e, poucas vezes nos damos conta disso. Quando nos permitimos ser vulneráveis ao que sentimos, e mais do que isso, nos permitimos expor o que sentimos, o nosso mergulho emocional profundo nos faz emergir tal qual realmente somos. A nossa verdade transborda.
[[…a demanda tá aumentando, é pintura e mais demão, pra decorar castelo coração… eu te espero e você espera o que de mim?”]]
Primeiro arrume a si mesmo, ame a si mesmo, respeite a si mesmo, decore a sua alma, mas de forma que o filtro não impeça de ver quem realmente ela é. A expectativa sobre o outro torna-se cada vez menor.
[[“Se o tempo me devora, aceito o que eu deixei. O mar e mundo afora, por onde naveguei. Sei que tá longe do fim, eu troco o não pelo sim.”]]
O tempo e a esperança estão abraçados neste verso. E mesmo que a música de Miguel Rosa seja mais intimista, imagino este trecho sendo cantando em coro, em um quase culto. Isqueiros acesos levantados com a mão do coração e o povo cantando de olhos fechados. Rodrigo Amarante bem exemplificou na letra de “O velho e o moço”: “Se o que eu sou é também o que escolhi ser, aceito a condição”. Rosa, por sua vez, compreende a passagem do tempo, aquilo que não pode mais voltar, ele aceita o momento presente e aquilo que o trouxe até aqui, mas olha para o horizonte e imagina que a sua estrada ainda tem muitos quilômetros à frente.
[[Agora tem a nossa casa, cachorrada no quintal, já peguei lenha pra lareira e pus a roupa no varal…”]]
Não havia melhor frase para terminar a canção: após todo o seu processo de cura, há um amor, há os cachorros, há a simplicidade da vida, das relações humanas e o conforto emocional por trás de cada pequena ação. Aqui cito Tolstói: “Há quem passe por um bosque e só veja lenha para fogueira”. Miguel, olhou para o bosque, entendeu o bosque, escolheu os melhores gravetos e foi para casa fazer o fogo. Pendurar roupas no varal, nunca fez tanto sentido.
“Mulungu” e “Castelo coração” comprovam a capacidade como letrista do cantor. Além de uma estrutura musical que bebe da fonte do folk indie misturada com a brasilidade que Miguel Rosa tem tanto buscado, é um alinhamento dos astros em sua carreira. Ele decidiu desviar a rota, e que lindo atalho ele encontrou. Seu trabalho em inglês é bonito demais, porém agora em português ele consegue atingir outros corações.
Como músico, cantor e compositor, Miguel Rosa é criativo demais, tem uma forma limpa e clara de cantar, um timbre masculino bem marcado com uma expressão potente. As modulações são simples, bonitas e precisas. As canções são construídas com uma estrutura fácil para que haja proximidade do ouvinte com a sua arte. Ele é um artista visual. Ele cuida de sua própria estética musical compondo os ângulos certos onde a sua música aparecerá na tela. Ele oferece palavras e dedilha violões para nos encantar pelo caminho. Longa estrada.