O sangue pulsante nas faixas do Dylan de Vanguart

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Tem uma ideia que não sai da minha cabeça. Uma ideia perdida, desvanecida entre tanta palavra de referência bibliográfica: Já não sei mais se está dormindo em algum livro do Juliano Garcia Pessanha ou do Maurice Blanchot, talvez em algum lugar entre o Roland Barthes e os antropófagos. Mas é justamente essa questão: quando nos encontramos com algo, uma ideia, uma criação, uma fonte que nos diz, e aquilo faz tanto sentido que pensamos: “na sua feitura, não pode ser, foi concebido diretamente pra gente”. A incorporação é tanta que vai ao ponto de não saber mais o que é autor o que é espectador. É tão interior que chega a ser âmago: e nos esfregamos tanto na coisa, na ideia, no algo, que vira nossa: como se só nós tivéssemos pensado aquilo, criado aquilo, cultivado desde a mais guardada infância.

Não é fácil cantar um Nobel: afinal, não é a palavra: tem a ver com a tessitura da frase, com o talho do encadeamento. Não é o som: é a sutileza com que a corda reverbera a densidade do comprimento da onda. É preciso, ao mesmo tempo, vigor e maciez. E o Vanguart faz isso, como se cantar Dylan fosse cantar eles próprios. O grupo parece conhecer a geografia torta de cada canção, sabendo o lugar de cada detalhe, a esquina exata de cada palavra na topografia rabiscada do disco: onde é preciso se demorar e onde só o silêncio faz esperança.

Hélio Flanders tem, na voz, a aridez lamuriosa que algumas linhas pedem. Como se vestisse as estrofes e, seguro de si, desfilasse pelo tempo que corre no disco com leveza, buscando incessantemente as células da música, em um mergulho invertido que tem como meta o oxigênio do céu e não o desconhecido do mar. O destaque fica para o disco inteiro, ouvindo faixa após faixa, sem pressa nem nada: só a música, o que realmente importa.

É preciso dizer da atualidade dos temas e das canções: a agudez de Dylan ainda corta e rompe cada hipocrisia e angústia que reside aqui: num tempo em que this is the story of the Hurricane é, infelizmente, a história de Rafael Braga e tantos outros desnomeados. Mas, enfim, fiquemos com essa coisa deslumbrante e pungente que é Blowin’ in the Wind:

A política lírica tocada pelo Vanguart, que refaz e questiona, mais uma vez, quantas orelhas um homem deve ter até ouvir o lamento das pessoas, é fundamental para o espírito do nosso tempo. Mas a intenção também vive na forma: pois as canções do Dylan (e essa, sempre) são isso: uma voz que são várias, um Eu que passeia no Nós: um Tu que é o Todo, e se transmuta logo em To Do.

Não há mais como colocar palavras aqui: tudo o que deve ser dito e sentido está lá, no disco, na obra, nas camadas escolhidas pela banda, nas nuances e nos detalhes. No carinho com o mestre e nos riscos que, aprendidos com ele, se deve correr e riscar: Só passa ileso pela vida quem não está nela.