SABLE: um ensaio sobre a escuridão da separação ou a culpa que precede o isolamento

por

Estou a cinquenta e três minutos ouvindo “SABLE” o novo EP do Bon Iver no repeat. São cinquenta e três minutos de pura reflexão ou devaneios ou de tentativas de compreensão cheias de pistas mentais que me levam para diversos cômodos psicológicos. Essa provocação que a arte faz com aqueles de nós que são famintos pela magia sonora que uma música causa pulsando em nossa corrente sanguínea, essa provocação, somente artistas genuínos
conseguem fazer.

Em meio a tantos “Justins” que conhecemos na cena musical, aquele que tem o meu maior respeito chama-se Justin Vernon, apelidado por alguns brasileiros carinhosamente de “Justino”, que já nos presenteou com obras riquíssimas, petardos musicais que explodiram com a nossa racionalidade, já que a grandeza da arte que ele produz, além de subjetiva, requer abstração na escuta.

Não, eu não vou falar aqui sobre os seus discos anteriores em busca de qualquer comparação. Esse texto é até um pouco presunçoso, já que quero compartilhar sentimentos com “os meus”, com aqueles que já entenderam o tamanho de Vernon, o resto do planeta que corra atrás de saber que artista é esse

“SABLE” é uma espécie de hemorragia emocional. O cantor e compositor por trás desse projeto incrível que é o Bon Iver, esse ser humano – ou seja, lá o que ele realmente for – está sangrando, está sangrando seco. Sabe quando sofremos um corte qualquer em nossa pele, na mão ou na perna Sabe quando aquele sangue escorreu, a dor até já passou e aquele sangue continua ali, já secou? É nesse momento que olhamos para aquela ferida de maneira diferente. Justin está limpando aquele sangue seco e enquanto limpa, mergulha na paranoia de suas imperfeições.

Culpa, muita culpa. Arrependimentos, muitos arrependimentos. Dores, muitas dores. Sua mente inquieta estava a pensar: que diabos fui fazer com a minha vida? É Vernon, agora, nesse momento da minha jornada, caso você queira, podemos sentar e discorrer sobre esse assunto: nos últimos dois anos, basicamente concluí um mestrado com tamanhas frustrações e derrotas.

O EP, embora oficialmente tenha quatro faixas, sendo que a primeira é apenas uma pequena introdução com duração de doze segundos, na verdade, narra em uma trilogia de canções, as profundezas da mente de Justin ao fazer relatos pessoais sobre os últimos episódios turbulentos de sua existência, como se fosse um monólogo a ser apresentado em um palco.

Abrindo as cortinas

Ato I: As Coisas Por Trás Das Coisas

O artista nessa cena, põe-se em dúvida sobre o sentir, a ansiedade presente não o deixa definir o que realmente ele precisa, embora com clareza ele saiba que não é nada bom o que está acontecendo. Em “Things behind the things behind the things”, ele quer deixar os sentimentos irem embora. Ele foi deixado? Ele já não tem mais quem gostaria a seu lado? Ele quer contar ou não? Ele escolhe quais partes da história deve dizer?

O que há por trás daquilo que parece? Há sempre mais do que supomos em nossos delírios mais lúcidos. O fato é que as tais coisas que aconteceram, acabaram com a sanidade mental de Justin, que precisa dissecar a respeito com a sua verdade, mas considera desnecessário abordar cada detalhe.

Ato II: Planos Desfeitos

O sentimento de “Speyside” é desolador. Há uma desesperança e um mea-culpa ensurdecedor até mesmo no volume mais baixo de cada palavra dita. É a expressão da angústia esculpida no rosto de quem foi abraçado por seus arrependimentos. Sua fisionomia é uma reação por conta da repetição de um ciclo de tristeza que ele não podia negar: “Nada realmente aconteceu como eu pensei que aconteceria”.

Nessa cena, o personagem se entrega totalmente a sua vulnerabilidade, pois ele está convencido de sua culpa pelo término de uma relação e estende a sua mão implorando ajuda para se reconstruir a partir de seus destroços. Ele ignora o fato de que precisa perdoar a si mesmo, ele prefere pedir perdão.

Ato III: Perdas e Ganhos

Aqui, após o artista ter revelado em cena, algumas circunstâncias sobre um dos períodos mais difíceis de sua vida, minimamente ele vai encontrando resiliência. “Awards Season” que pode ser literalmente traduzida como “Temporada de prêmios”, aparentemente insinua na letra que ao menos ele verá a sua ex pela TV, dando pistas de que ela pode ser alguém que frequenta as premiações.

Por outro lado, pode também ser associada com os ganhos após tantas perdas emocionais. É o momento de reestruturação cognitiva para seguir em frente.

A grande sacada lírica, é justamente o final, quando o personagem se dá conta de que apesar da dor, houve também construção: “Porque as coisas têm que mudar? Estávamos no caminho de sermos os melhores para enfrentar todos os problemas. É tão difícil de explicar e os fatos são estranhos. Mas quer saber o que vai ficar? Tudo o que criamos. ”

As cortinas fecham após Vernon cantar alto, afastado do microfone e a capella. Esse personagem é real.

Imagens Sonoras de Uma Alma em Silêncio

Musicalmente o EP retorna a um formato mais simples de arranjos e texturas mais uniformes, camadas sonoras ao som de violões, baixo, guitarra, bateria além de sintetizadores, piano, saxofone e flauta trompete, mas sem qualquer exagero. É a narrativa de Vernon que precisa fluidez, incluindo a própria entonação vocal que surge sem efeitos e mais crua.

O audiovisual, dividido em três videoclipes, um para cada canção, é obscuro, quase amorfo em algumas cenas. E ao mesmo tempo em que sugere movimento, silenciosamente revela uma retração corporal do personagem principal que está isolado. Um luto, um velório, um adeus a uma parte da vida que precisa deixar o seu corpo. Uma morte artística.

“Sable”, soa como uma necessidade de falar sobre assuntos inacabados e que precisam encerrar. Não há como dar continuidade ao fio que nos guia nessa vida, sem que algumas partes sejam curadas. Mas para tanto, temos que encarar o abismo se quisermos nos resgatar de lá. Precisamos compreender que uma decisão que tomamos, muda todo o percurso que havíamos planejado, embora muitas vezes, seja somente após deixarmos alguns lugares, que sanaremos as dúvidas sobre aqueles lugares e descobriremos que era lá, o território ao qual pertenciamos.

O EP, que chegou com uma história muito parecida com um período pessoal que enfrentei há pouco tempo, demonstra a importância de buscarmos artistas que consigam expressar as suas verdades com tanta vulnerabilidade, que legitimam assim, as dores sentidas por aqueles de nós que nos consideramos pessoas comuns.

Agora que já se passaram mais do que cinquenta e três minutos que ouço “Sable” repetidas vezes, enquanto assisto aos clipes e escrevo ao mesmo tempo, eu vejo no vídeo o Vernon sentado naquela cadeira, dentro daquela casa, no seu mundo em preto e branco, mas eu imagino que ao deixar aquela cadeira e sair caminhando pela porta ao final da última música, ele está caminhando para encontrar algum alivio e não olhar mais para trás.

Figurativamente aceno para ele de longe e grito: vem cá, temos muito a conversar! Enquanto ele não chega, também sento em uma cadeira, ouço “Speyside”, limpo um sangue seco que havia escorrido de um machucado em minha perna, penso em minha separação, no peso de minhas escolhas, lembro dela, das minhas culpas e dos meus arrependimentos, ensaio voltar, mas limpo as lágrimas e permaneço em silêncio. Talvez eu também precise deixar de olhar para trás. A vida que eu tinha, já não existe mais.