Sobre Clubes Folk de Londres: uma aula de como ser alguém melhor

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Quando eu soube que teria a oportunidade de apresentar um trabalho acadêmico em Londres, em julho de 2018, mais especificamente na King’s College, acho que tive um daqueles “eureka moments”, rsrs, tentando digerir com muito entusiasmo o fato de estar a alguns passos de uma pub session ou de um clube de folk da cidade.

Ainda que soe como um exagero, penso que todo músico que se preze – e acrescento aqui, todo fã de música folk – teria uma satisfação enorme em conhecer clubes históricos como Brentwood Folk Club ou Troubadour, onde artistas como Bob Dylan, Joni Mitchell e Paul Simon se apresentaram lá pelos idos anos 60/70.

Bob Dylan no Troubadour London, em 1962

Uma breve folheada no livro de Michael Brocken, The British Folk Revival: 1944-2002, nos indica que as raízes dos clubes folk da Inglaterra estão no pós-segunda guerra, especialmente sob influência do gênero musical oriundo da terra do Tio Sam, o Skiffle (mistura de jazz, blues e folk, geralmente tocado com instrumentos fabricados em casa ou improvisados), mas que se tornou bem popular no Reino Unido na década de 1950.

Após um certo período, o Skiffle deu espaço então para materiais de música folk tradicional, ainda assim, com empréstimos do folk norte-americano. Um dos principais clubes dessa segunda época do folk revival é o chamado The Ballads and Blues Folk Club, de Ewan MacColl (autor da belíssima “Dirty old town”).

Em meados dos anos 60, já seria possível encontrar vários clubes de música folk espalhados na Inglaterra, mas não exatamente espaços físicos fixos, já que a ideia de “clube” se sustenta muito mais no agrupamento ou encontro de pessoas amantes do gênero folk.

A verdade é que pensei em colocar boa parte desses lugares no meu cronograma de viagem – um tanto apertado por conta do evento na universidade – mas, confesso… Que tarefa árdua essa de fazer planos em Londres, viu…

Você quer simplesmente tudo desse lugar histórico e moderno, obviamente! –experimentar coisas como Fish and Chips ou Bubble and Squeak (há também infinitas opções vegetarianas por lá que podem agradar a todos), tirar foto na Abbey Road, pegar trem pra Liverpool (falo pelos fãs dos Beatles, rs)…e, claro, ainda tem London Eye, Palácio de Buckingham, Notting Hill, Leicester Square, entre “zilhões” de coisas pra se fazer… Mas eu, infelizmente, além de precisar andar a passos curtos e levinhos por causa do pós-operatório da minha apendicite naquele momento, só tinha uma semana pra tentar aproveitar tudo que a viagem poderia me proporcionar.

De todo modo, não hesitei em tentar agendar uma visita aos clubes Morris e Sharp’s, com direito a um floorspot do meu projeto Aurora Boreal. Geralmente eles abrem uma agenda de ensaios abertos e de apresentações para os visitantes, sem necessidade de microfones ou amplificadores, claro – bem diferente da experiência que tive, por exemplo, em um bar honky-tonk em Austin, no Texas, o grande Broken Spoke (imagina saber que você está de frente para um palco em que Willie Nelson e George Strait já tocaram?!).

Percebi então que a essência do folk e do chamado floorspot mora aí também (na vibe acústica, no simples “contar histórias”…), especialmente se a gente lembrar do livro Singing from the Floor: A History of British Folk Clubs, escrito por J.P.Bean.

As apresentações me parecem ter um ar mais informal, mais comunitário, baseado, talvez, na herança de uma visão marginalizada desses clubes há cerca de uns cinquenta ou sessenta anos, quando políticos e policiais classificavam reuniões em clubes folk como encontros suspeitos. Outra herança é justamente uma das características mais relevantes pra mim na música folk: o simples ato de “contar suas coisas”, de uma forma igualitária, sem essa noção de artista como “celebridade” – você é apenas mais alguém que faz parte daquela grande e rica atmosfera cultural.

E aqui vai uma dica: se você tem um projeto musical e quer se apresentar em um dos encontros desses clubes (ou, quem sabe, em outros), tudo que eu posso dizer é “acredite e envie um e-mail a eles”. Sim, eles são acessíveis!

Morris Folk Club

O Morris me atendeu por e-mail e também por Messenger, no Facebook. Me encantei com a generosidade de uma das hosts, a simpática Anja, que não só me tratou com respeito em suas mensagens, mas também nos recebeu (a mim e ao meu ex-parceiro Cleiton) com muito carinho. Acho que isso é importante pra quem cai nos estereótipos do tipo “ingleses são frios” – muitas vezes você pode confundir uma personalidade reservada com frieza ou arrogância. Percebi esse ar mais moderado ou discreto, digamos, nos dois clubes nos quais nos apresentamos; porém, sem sombra de dúvidas, posso dizer que em nenhum momento deixei de me sentir acolhida. Além do mais, a música por si só contagia e o ar de descontração nos clubes acaba sendo inevitável.

O encontro dos membros do Morris Folk Club foi realizado no porão (sim, demais, né?!) do pub Speakeasy, situado em Dalston Lane, a alguns metros da estação Dalston Junction. Chegamos cedo e deu tempo de tomar um chá gelado, só pra acalmar os ânimos, rs e afinar o ukulele. Curioso foi tentar decidir o que tocar para uma platéia tão distinta… Não queria algo sem conexão com os que ali estavam. Decidi apelar para o meu conhecimento de competência intercultural e ensaiei algumas do Fairport Convention, mas acabei escolhendo uma das minhas preferidas do álbum solo da Sandy Denny, o “Rendezvous” (1977): a poética “By The Time It Gets Dark”, que ganhou uma regravação maravilhosa da Mary Black nos anos 80, com participação da Emmylou Harris.

Abaixo, o repertório dos participantes do Morris Folk Club daquele 26 de junho de 2018 – uma das minhas memórias mais legais de Londres!


Repertório do Morris Folk Club, em 26 de junho de 2018

Foi empolgante cantar Wade in The Water totalmente acappella e com muitas palmas; Ouvi Crossroads quase chorando; adorei conhecer a história e o significado do canto Shosholoza – mas tivemos que sair antes do término da reunião. Agradecemos a gentileza e a oportunidade e partimos para o nosso segundo compromisso: um floorspot na reunião do Sharp’s Folk Club, no Cecil Sharp House, situado na Regent’s Park Road.

Sharp’s Folk Club

Cecil James Sharp foi um músico e pesquisador inglês, responsável por trabalhos como Folk Songs from Somerset (1904–1909) e English Folk Song: Some Conclusions (1907), além de também se dedicar aos estudos de danças folk. Seu nome é muito pertinente para o clube que nos recebeu; o ambiente lembra as dependências de uma associação (não sei por que razão, mas me veio à mente o Clube da Lua, do Juan José Campanella, rs), indicando em seus quadros de avisos toda a produção cultural do espaço, envolvendo workshops de coral ou danças icônicas, além de salas para exibição de filmes ou ensaios fotográficos.

As reuniões do Sharp’s Folk Club são realizadas às terças (exceto no mês de agosto, segundo o próprio site deles informa) e você paga cerca de £3.50 pra contar/cantar sua história rsrs. O ambiente é bem tranquilo e é incrível como as pessoas realmente prestam atenção no que você diz – me senti extremamente honrada em poder estar ali, ouvindo cantigas folk entoadas de um jeito que lembra trovadores medievais, por exemplo. Acabamos tocando a mesma música (By The Time It Gets Dark), que, aos meus olhos perfeccionistas, destoava um pouco da proposta daquela noite no Sharp’s, mas nem por isso fomos menos aplaudidos. Tive a sensação do dever cumprido – algo como “brasileiro também manja de folk”, rs.

Bom, se você espera encontrar em clubes como o Morris ou o Sharp’s uma gig com o último lançamento do Of Monsters and Men ou do The Lumineers, lamento dizer que você vai se decepcionar. Talvez, quem sabe, buscando informações aqui e ali na web, seja possível encontrar clubes que tragam essa sonoridade mais atual.

No entanto, meu caro leitor (e um adendo: nada contra o folkmainstream” dos nossos dias), acho que o espírito do folk tradicional pode ser assimilado e internalizado em reuniões como essas que descrevi aqui, não só pela riqueza musical e histórica, mas principalmente pelo fato de que o “take a stage”, nesse caso, não se configura como uma reunião da famigerada “panelinha”, como um show de calouros ou como um passo ao estrelato…

Tem mais a ver com cortesia, generosidade e humanidade.