Tamino e o fio infinito da voz

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Há alguma coisa na lírica árabe que encanta: talvez suas sutis variações no caminho das notas ou mesmo esse pesar que nos adentra: um solfejo lamurioso que fisga nosso mais íntimo. É difícil explicar algo que só a experiência corporal consegue captar. O que escapa de toda música ocidental é o que brilha: é adentrando esse outro, o qual não compartilha dos mesmos signos culturais que o nosso, onde faz crescer flor. Como se só pudesse expressar minha saudade cortante da artista plástica através de modos que nossa cultura não pode produzir: toda forma ocidental parece pouca. E é.

Tamino, em seu primeiro disco, “Amir”, nos mostra a saudade de uma maneira inteiramente bela. Mistura com exatidão seu mundo árabe com sons contemporâneos. O disco escorre potência e possibilidades. O cantor belga, mas de origem egípcia, desencarna: ao primeiro acorde, junto da primeira palavra, temos a sensação de que o tempo perde seus ponteiros e nos abraça. Não há outra definição possível. Durante todo o disco pode-se sentir a solidão amarela de um sorriso carregado de história.

O cantor compõe a estética de seu disco num caleidoscópio: suaves batidas eletrônicas acompanhadas de um piano em carne viva, algumas guitarras se mesclam com instrumentos de cordas de origem árabe e, por fim, a orquestra: composta apenas de refugiados, consegue, por intermédio do som, depositar um fino véu de desespero à voz penetrante de Tamino.

Destaque para a música que abre o disco, “Habibi”: talvez a melhor abertura de um disco que já ouvi: tudo está lá. E até a última música temos reverberações dessa primeira, desse canto torto, cortante, que nos queima assim como a luz queima quando muito perto.

O clipe de “Sun May Shine”, segunda música do disco, é majestoso. A câmera lenta em demasia faz com que percebamos detalhes no corpo e no rosto do cantor, o que nos aproxima mais de sua figura: seu nariz protuberante e sua boca segura: seus olhos escuros delineados pela sua origem. Assistam com essa ardência árabe nos olhos:

O contato com o outro é o que nos eleva: reconhecer no diferente uma nova forma de pensar, de agir, de experimentar e observar o mundo. Se abrir enquanto corpo, a fim de incorporar outras formas. O disco, apesar de melancólico, mostra isso: o outro tem tanta importância no mundo quanto o eu. Saí dessa audição pensando, quem sabe, ouvir mais coisas de lugares que só conheço de nome.

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