“Um Completo Desconhecido” não é um filme para todos, mas é um filme para quem quiser

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Antes de qualquer coisa, preciso dizer que essa resenha é de cunho completamente pessoal. Quero escrever minha opinião sobre essa cinebiografia do Bob Dylan como a curiosa do folk que sempre fui, que aprendeu a pesquisar e amar um estilo musical tão rico em história. Não estou aqui para analisar cores, fotografia ou atuações; deixo isso para cinéfilos e fãs mais antigos da cena, que provavelmente têm mais conhecimento do que eu. Vou escrever aqui como escrevia no começo do Folkdaworld, há 10 anos.

Eu estava à espera da estreia desse filme desde 2020, mais ou menos. A notícia de que Timothée Chalamet viveria Bob Dylan nas telonas não é nova. Lembro de escrever aqui no blog que as gravações estavam paradas por causa da cena pandêmica que vivemos. Só me restou esperar. E, depois que as gravações foram retomadas, tudo pareceu se acelerar: saíram as primeiras fotos, depois vídeos das gravações de apresentações ao vivo, depois o trailer e, num piscar de olhos, o filme estava no cinema e concorrendo a oito Oscars.

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Assim que vi a notícia de que o filme estrearia em 30 de janeiro em Portugal, país onde moro, passei a olhar constantemente no site do cinema para ver se já dava para comprar os bilhetes. O que só apareceu dois ou três dias antes da fatídica estreia. Mas, assim que apareceu, corri para garantir meu lugar no centro da sala. Para minha surpresa, ou não, quando cheguei, o cinema não estava lotado, não havia filas. Um senhor de muletas e cabelo grande se aproximou devagar junto com um amigo, esse calvo, mas também de cabelos brancos. Logo pensei: “Sem dúvidas, vão ver o filme do Bob Dylan”. O que eu não esperava era que, em meio a um cinema cheio de cadeiras vazias, eles se sentassem na mesma fileira que eu.

Como cheguei cedo, foi engraçado ver o público chegando aos poucos. Casais de meia-idade, figurões como o senhor das muletas, senhores com cara de europeus cult, alguns jovens pingados. Nos trailers, apareceu o novo filme da Cate Blanchett, como se algo quisesse me lembrar do que o Pedro Couto, o Dylanesco, falou em nosso podcast: como vencer a atuação dela como Dylan em “I’m Not There” seria o maior desafio de Timothée Chalamet nesse filme.

Quando as luzes enfim se apagaram e o filme começou, me senti transportada para uma Nova York escura e para a cena underground que rondava seus cafés na década de 60. Foi interessante como o filme foi apresentando aos poucos os personagens principais daquela época. Alguns chegam a passar despercebidos. Se você não é fã de folk e não sabe exatamente quem é quem, pode nem reparar em quem aparece no caminho do jovem Dylan, guiando-o até o hospital onde Woody Guthrie estava. Será que foi o Dave Van Ronk?

Este é outro ponto que me pegou. Apesar de entender a representação de Guthrie no filme, é meio triste que ele apareça apenas na mais triste de suas condições. Um homem voraz em sua sede de justiça por direitos humanos aparece debilitado no filme, mas sempre impulsionando o jovem Dylan, que mal abria a boca para falar. Inclusive, palmas para o menino Timothée, que se empenhou nas expressões e trejeitos de Dylan.

Voltando a Guthrie, me pergunto por que James Mangold quis demonstrar essa vulnerabilidade dele, acamado no quarto de hospital por causa da Doença de Huntington, uma complicação neurológica degenerativa. Mas ele estava ali passando o bastão para Dylan, é verdade. E foi emocionante ver o jovem desconhecido tocar uma de suas canções no violão com os icônicos dizeres: “This machine kills fascists”. Também foi bonito ver a amizade entre Woody Guthrie, Pete Seeger e Bob Dylan. O que esse trio fez pela música folk talvez jamais se repita.

Por falar em Pete Seeger, a atuação de Edward Norton é impecável. Seu jeito de falar, sua postura, a calvície… Parecia que o próprio Pete estava ali presente, guiando a atuação.

À medida que o enredo se desenrolava, os espectadores eram apresentados àquele movimento que mudou uma geração e molda até hoje muitos artistas. O namoro conturbado de Dylan e Suze Rotolo, vivida por Elle Fanning; a busca dela por entender quem era Robert Zimmerman, o homem que ela amava, mas só conhecia por Bob. Quem era Zimmerman e por que se tornou Dylan?

O encontro de Dylan e Joan Baez, excelentemente representada por Monica Barbaro. Sua parceria, suas desavenças, sua paixão e suas discordâncias. Tudo engrossou o caldo para mostrar um lado de Dylan que vai além do artista. E sua troca de cartas com Johnny Cash? Dois dos músicos mais icônicos da música norte-americana trocando cartas, rasgando elogios e mantendo uma das amizades mais interessantes da época.

À medida que o filme nos apresenta o crescimento desse Dylan, mostra também os bastidores da indústria musical. A entrada de um artista independente nesse meio pareceu tão contemporânea. Gravar covers, cantar o que todo mundo canta, fazer o que todo mundo faz… Dylan tentou quebrar essas barreiras desde o início. Quem pode definir a arte, afinal de contas?

Tudo isso sem deixar de lado a importância da música na cena política da época. Discursos aparecem ali, a Marcha sobre Washington… De maneira muito sutil, o filme cita artistas relevantes da época com os quais Dylan se relacionou. Beatles, Donovan… Seus nomes são mencionados, mas eles não aparecem. De novo, me perguntei: quem não conhece a história vai saber do que esse filme está falando? Se não sabem, vão buscar informações sobre? Ou isso são apenas gatilhos para a nostalgia de quem já conhece o assunto? Será que alguém percebeu o cara sentando sempre tocando tamborim, seria ele a inspiração para “Mr. Tambourine Man”?

E o Newport Folk Festival? Me pergunto quantas pessoas que estão indo aos cinemas assistir a esse filme para ver, talvez, mais uma grande atuação de Timothée já ouviram falar desse festival. É fundamental. Talvez o grande sonho de muitos fãs de folk seja estar presente ali; para os artistas folk, tocar ali. Mais uma vez, o filme mostra a história e apresenta críticas à cena musical. Folk só pode ser tocado de maneira acústica? O que é música folk, afinal? Quem são Peter, Paul e Mary, e por que são um dos trios folk montados pela indústria e mais bem-sucedidos do mercado?

Dylan, mais uma vez disruptivo, provoca. Leva sua guitarra e uma banda eletrificada para o palco. Johnny Cash adora a ideia; Pete Seeger e os puristas do folk, nem tanto. Joan Baez assiste a tudo do canto do palco, assim como Odetta, mais um ícone da música folk que mal aparece. A atriz, inclusive, é muito parecida com ela. Mas ela passa ali tão, mas tão sutilmente, que eu nem consegui achar o nome da atriz nas minhas pesquisas.

Não se engane, “Um Completo Desconhecido” é um filme sobre Dylan, não exatamente sobre folk. Mas o folk está enraizado na música dele, e inevitavelmente a história do folk norte-americano se mistura com a história desse artista que, na época, jovem, estava começando a se mostrar para o mundo.

E aqui eu explico meu título: “Um Completo Desconhecido”, de fato, não é um filme para todos. Nem todo mundo vai gostar, muita gente vai criticar, muitos dirão que faltou isso ou aquilo. Mas, definitivamente, é um filme para quem quiser. Para quem quiser conhecer mais sobre música, sobre um momento da história em que artistas lutavam por direitos humanos, por causas sociais, por espaço na indústria.

“A Complete Unknown”, ou “Um Completo Desconhecido”, como queira chamar, mistura ficção com história. É quase um documentário romântico. E termina falando sobre o que aconteceu depois daquilo tudo. Fala sobre o sucesso de Dylan eletrificado, diz o que aconteceu com Joan Baez, conta o que houve com Pete Seeger e por aí vai. Quando vi isso, tive um sentimento engraçado, meio que… é uma história tão próxima a mim, que conheço tão bem nesses 10 anos de Folkdaworld, mas ao mesmo tempo tão distante de muita gente que não faz ideia do peso que essas cenas carregam.

Quando o filme acabou e as luzes se acenderam, vi umas garotas pesquisando sobre Dylan na Wikipedia. Talvez estivessem checando se o sobrenome dele era mesmo Zimmerman. Lá fora, alguns jovens estavam discutindo se a voz do Timothée era feita com inteligência artificial para soar como a do Dylan. No elevador, indo para o estacionamento, tomei a liberdade de perguntar a um senhor brasileiro que estava comentando com os filhos que esperava ouvir outras músicas o que ele tinha achado do filme. Ele respondeu: “Eu que vivi essa época, achei excelente. Cantei todas as músicas baixinho”. “Eu também cantei, me controlando”, respondi para ele.

Volto a dizer, pedindo perdão se me torno repetitiva: “Um Completo Desconhecido” não é um filme para todos, mas é um filme para quem quiser. É um encontro de gerações. Como o próprio Timothée disse em uma entrevista, nesse papel, ele é como uma ponte para a música do Dylan. E, para mim, todos têm a oportunidade de atravessar. Mas só fará isso quem estiver disposto a sair da zona de conforto das playlists criadas por algoritmos.