Valter Lobo e seu disco, faminto.

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Esse disco comeu meus ouvidos por dias e dias. Comeu minha bigorna, martelo e tímpano, um por um. Comeu as lágrimas que chovi e os sorrisos que explodi. Comeu cada molécula de ar que atravessou até que encontrasse minhas sinapses. Comeu meu coração com carinho, ferocidade e polidez. Comeu meu caos e meu rigor. Comeu meu sotaque. Comeu minhas noites em claro e meus dias de sono. Comeu meus livros do João Cabral de Melo Neto.

Esse disco comeu comigo enquanto jantava com a artista plástica. Esse disco comeu meus lençóis e travesseiro. Comeu minha camisa mais bonita e meu fone de ouvido. Comeu cada pêlo do meu corpo. Comeu minha voz. Comeu meus beijos lentos. Comeu meus desesperos depois do jantar. Comeu minhas indicações e todos ao meu redor. Comeu cada pedra de asfalto em que pisei. Comeu meu disco em pós-produção. Comeu meus shows, ensaios e improvisações. Comeu cada byte do Streaming. Comeu minha vida enquanto a vivia. Comeu meu mestrado e minhas decepções.

Não houve o que esse disco não comesse. Onde ele estivesse, se alimentava. E não há como alimentá-lo por inteiro: ele atinge um patamar de interminável. Em “Mediterrâneo”, Valter Lobo consegue parir em potência um disco faminto e eterno. Cada esquina que esse disco aponta é acerto. Das experimentações à respiração ofegante entre uma estrofe e outra, o disco se destaca. Melhor: se derrama.

“Oeste”, música que ganhou clipe, é uma ótima entrada: mistura perfeitamente bem suas letras-lâminas, suas experimentações e sua sonoridade aconchegante. Não há como não se encantar com essa canção. O músico português acerta no alvo: nós. Com um clipe tão exuberante quanto, tão alucinante quanto, tão quanto quanto, nos enrola e umedece. Repare:

Valter Lobo é esse nome que surge e merece cada segundo da nossa atenção: cada músculo tensionado enquanto a música entra, cada arrepio surdo enquanto a música sai. Tenho a forte impressão que esse disco será uma daquelas obras que não consumimos em vezes, mas em anos. É fenomenal quando a arte dinamita até a ordem sepulcral do tempo.

Esse disco comerá, ainda, o que sobrou das minhas vísceras. Comerá cada montanha tortuosa dessa cidade do interior em que estou sentado. Comerá minha escrivaninha, meus papéis e meus poemas. Comerá comigo quando eu não for mais novidade. Comerá você, leitor, saborosamente. Comerá suas playlists, downloads e listas. Comerá cada átomo seu, assim como comeu os meus e o do próprio Valter Lobo. E a gente aplaudirá cada mordida desse disco.