Um dia, em meio a uma noite do tamanho de uma vida, nesse estado estranho entre a vigília e o sono, você percebe que algo está estranho: um som, uma voz rouca, que só poderia sair das entranhas de um deus ou demônio. Esse ser lampeja uma frase em que te joga num dilema: tudo o que viveu, até hoje, viverá de novo e uma vez mais. Você, ali, parado, entre o desespero e a benção. Você, ali, entre a recusa e a glória. A qualidade de deus ou demônio, que você lançará contra esse ser nietzscheano, está toda no seu olhar.
Ricardo Mabilia desmancha a náusea e faz um disco. “Universo Vil” é um grande disco. Não há como não dizer dessa qualidade: a introdução já diz muito: os toques, um tanto relógio um tanto negação, situando o disco num momento, nesse espaço pouco tangível que é o outro. Toda produção dos detalhes é fantástica: podemos perceber o artesanato das texturas, a escolha de cada overdub acrescentado. Todo produzido num quarto: tão íntimo que é possível que quarto seja uma nova palavra pra denominar coração.
Destaque imenso para “Teu silêncio é um temporal”, que se faz por si só. Como se todas as palavras costuradas entre os sons estivessem meticulosamente pensadas e encaixadas: não há arestas: e se elas existem, são esquinas: esse lugar onde o mundo se cruza, querendo ou não. A canção ganhou um clipe de encher os olhos. Diversos tipos, distintos, dizendo. Flutuando numa espécie de universo artesanal, compartilhando as palavras da música: ninguém escapa do silêncio, da saudade, do percurso. Existir caminha rente a sentir. Sinta:
Michelangelo, quando perguntado sobre como conseguiu esculpir Davi numa única peça, disse que apenas fitou com calma o bloco de mármore até enxergar Davi. Então pegou o martelo e tirou tudo o que não era Davi. Nesse disco, acredito, Ricardo Mabília sentou em frente a um bloco profundo e imenso de silêncio e, calmamente, tirou de lá tudo o que não era “Universo Vil”: como se esse disco devesse, sempre, estar nos nossos downloads. Esperamos, daqui, firmes e ansiosos por mais coisas como essa.
