As 10 melhores canções de Sufjan Stevens, segundo o Stereogum
por Maísa Cachos
Faz tempo que não falamos do maravilhoso Sufjan Stevens por aqui, né? Pesquisando algumas coisinhas sobre o rapaz, acabei me deparando com essa lista sensacional do portal Stereogum e, claro, que quis compartilhar com vocês. Espero que curtam tanto quanto eu.
É um mergulho em canções que, a princípio, parecem tão simples, mas são repletas de histórias complexas e ligações que encantam os amantes da boa música e da obra desse talento que é Sufjan Stevens.
Não se assustem com o tamanho do post. Ele é algo para ser consumido aos poucos mesmo. Leiam, entendam e ouçam com atenção.
10. No Shade In The Shadow Of The Cross (de Carrie & Lowell, 2015)
Na cultura ocidental, nos é dito desde cedo que existem cinco estágios de pesar que todos experimentam quando se confrontam com a morte de um ente querido. Mas há um que geralmente não é mencionado, apesar de sua natureza quase universal: o estágio de “ficar vergonhosamente muito bêbado ou drogado e transar com pessoas que você provavelmente não deveria”. Felizmente, o bom Dr. Stevens fala sobre isso em “No Shade In The Shadow Of The Cross”.
A morte da mãe de Stevens, que sofria de esquizofrenia e dependência de drogas, o que a deixou muitas vezes ausente em grande parte da vida jovem e adulta de seus filhos, levou o músico a uma queda emocional. Talvez como uma maneira de estar mais perto de uma mulher que ele nunca conheceu de verdade, ele começa a replicar seu comportamento imprudente e autodestrutivo – uma das poucas coisas que ele sabe sobre essa estranha que, no entanto, o trouxe a este mundo.
Ao longo da música, Stevens consome cápsulas vagas e ameaçadoras de Deus-sabe-lá-o-quê, fica “bêbado para transar” e até se vê contemplando uma overdose de heroína intencional e suicida – a incerteza é apenas se ele fuma a droga, “inalar seu fogo” e “persegue o dragão longe demais”, ou a injeta e “conduz essa estaca pelo centro do meu coração”, comparando-se a um vampiro que já está morto, de qualquer maneira. Terminar o trabalho é apenas uma formalidade.
Uma canção como essa, em que cada linha é uma dor suicida, exceto por uma – já falaremos sobre isso – poderia facilmente parecer uma hipérbole e, portanto, ou falhar ou, pior ainda, se assemelhar as divagações não sofisticadas da página do LiveJournal de um adolescente. Mas a música atinge um nível de sofisticação com sua metáfora convincente da sua mãe como um fantasma ou “sombra” atordoando e possuindo Stevens a partir do túmulo, forçando-o a reencenar suas transgressões terrenas.
Isto é, até a última frase que é também o título da canção e uma referência a um hino de William Henry: “Não há sombra na sombra da cruz”. Por causa da quebra desse texto e do modo como ele conflita tonal e tematicamente com o restante da música, parece a princípio como uma desculpa. É como se ele só agora lembrasse que Jesus e o Cristianismo são totalmente reais e se ele simplesmente for levado para a igreja tudo ficará bem.
Mas Stevens cita essa frase com enorme complexidade. No hino a que ele faz referência, a “sombra da cruz” é um lugar de retiro seguro, e a “sombra” da qual ele está recuando é sua própria mãe. Sua própria vida e possivelmente sua alma eterna podem depender de escapar do fantasma dela. Mas, por outro lado, “sombra” – como a sombra debaixo de uma árvore – significa um lugar onde alguém é protegido e recebe um certo alívio.
Tudo isso contribui para que Stevens ainda não tenha ideia de como se sentir com relação à morte de sua mãe, quanto mais lidar com isso, mesmo depois de quase todo um registro de dolorosa introspecção. Tampouco ele encontrou uma maneira de enquadrar sua fé em Jesus com os sentimentos alternados de vazio e perplexidade que esse trauma o provocou. Mas a grande arte não é oferecer respostas fáceis. E o modo como Stevens reúne esses pensamentos e emoções poderosas, e os imortaliza em um vaso de dor e sofrimento tão honesto e esteticamente belo, faz de “Carrie & Lowell” uma das maiores realizações musicais desta década.
9. Chicago (de Illinoise, 2005)
A música pode ser chamada de “Chicago”, mas é mais sobre o lugar – e, de certa forma, a pessoa – que Stevens deixa para trás quando visita a agitação gloriosa da conhecida Windy City. Apesar da especificidade do título e do fato de aparecer no álbum intitulado “Illinoise”, a canção não tem nada a ver com o estado de Illinois.
Você não encontrará referências aqui a Michael Jordan, o Navy Pier ou os poços de queijo processado e o desespero pré-embalado que os moradores locais chamam de “pizza”. Isso porque “Chicago” não é sobre o que a cidade é; é sobre o que a cidade representa. E como Nova York, que é mencionada exatamente o mesmo número de vezes aqui que Chicago (a saber, apenas uma vez), ela representa liberdade e fuga – especificamente, do estado homônimo ao seu álbum anterior, “Michigan”.
De fato, grande parte do que acontece em “Chicago” é levado para casa, onde Stevens vendeu suas roupas para pagar as viagens para o sudoeste. A letra fala de Stevens na interestadual, “em uma van com meu amigo”, mas ele nem sequer diz ao ouvinte o que ele faz quando chega ao seu destino, com exceção de um único detalhe juvenil: dormir em estacionamentos. Curioso que a faixa que abre “Michigan”, “Flint”, também conta com um narrador que dorme em seu carro. Mas há um grande contraste entre o trabalhador desempregado de uma faixa e o desempregado da outra, o júbilo juvenil e a “liberdade” que Stevens sente quando está percorrendo o país, fora de uma Superstore Wal-Mart.
A música aqui combina muito bem com essa atitude, já que seus ritmos e batidas de guitarra insistentes adicionam uma sensação de inércia incessante às cordas quentes e melodramáticas. Enquanto isso, um exuberante grupo de jovens de um coral fornece vocais de apoio, elevando algo tão universal e comum quanto uma viagem para uma experiência religiosa.
8. I Want To Be Well (de The Age Of Adz, 2010)
O cristianismo de Stevens sempre fez dele um atípico entre os artistas indie, que geralmente tratam as religiões ocidentais com desconfiança e zombaria. Por isso, é um pouco surpreendente que o álbum mais divisivo de sua carreira não seja um dos seus santos épicos, mas sim seu lançamento mais secular. Em 2010, “The Age of Adz” mostra não a sua devoção a Jesus, mas a sua dedicação à eletrônica fria e sintética.
Talvez o lirismo fervoroso de Stevens e seu lirismo honesto sejam melhor combinados com sons orquestrais orgânicos do que com squelches ciborgues de bleep-bloop. Então, novamente, o truque funcionou como mágica para o projeto, assim como para The Postal Service, do Ben Gibbard. Não, com todo o respeito pelas ambições de Stevens, o problema com grande parte de “The Age Of Adz” não é conceitual. É a execução. A boa notícia é que os momentos que funcionam – como o sonho insano de fúria em “I Want To Be Well” – estão pau a pau com os melhores trabalhos de Stevens.
Você deve conhecer a história: em algum momento durante os cinco anos entre “Illinoise” e “The Age of Adz”, Stevens começou a sofrer de uma doença neurológica misteriosa, mas bastante debilitante. Atividades simples como subir escadas ou sentar se tornaram esforços hercúleos. O fato de os médicos estarem intrigados com a causa da condição de Stevens só tornou isso muito mais frustrante. Felizmente, o músico está saudável hoje. Mas a doença o deixou com um poço de inspiração do qual muito do conteúdo lírico do álbum surgiu, em particular esta faixa.
Saber um pouco sobre o passado de Stevens torna suas letras muito mais dolorosas. Mas não é preciso ser um biógrafo do músico para sentir sua dor quando ele grita, “Eu não estou de brincadeira” – sobre sua doença, sobre o mundo, sobre Deus e sobre si mesmo. Ajuda ter ouvido o restante do catálogo de Stevens, no entanto, porque em nenhum outro lugar o homem parecia tão zangado – mas não é um senso de raiva fortalecedor. Este é um homem que, apesar de sua ênfase, é incapaz de “estar bem”.
Qualquer médico que pense que a doença está apenas em sua cabeça só precisa ouvir “I Want To Be Well” para saber que seu sofrimento é real demais. E quanto aos sons de máquinas quebradas que Stevens – talvez imprudentemente – usa para cercar essa e todas as músicas do disco? Sério, Stevens poderia ter tocado a faixa em um Tamagotchi defeituoso, e essa sensação de sofrimento indefeso ainda seria traduzida de forma clara e trágica para o ouvinte.
7. Seven Swans (de Seven Swans, 2004)
Aqueles que ouviram atentamente “Greetings From Michigan” já sabiam que Stevens impregnava grande parte de seu trabalho com narrativas e imagens cristãs. Isso por si só não é nada chocante: apesar da tensão do ateísmo – real ou professado – que permeia a comunidade indie e a maioria dos movimentos juvenis modernos, Stevens sempre foi mais um geek do que um garoto indie. E a história das letras americanas está repleta de poetas e autores – muitos deles descrentes – que se apoiam em alusões bíblicas para acrescentar um senso familiar, mas poderoso de seriedade a seus escritos.
Mas com “Seven Swans”, a despojada continuação de Stevens para Michigan, o público descobriu algo sobre o compositor que, apesar de não convencional quase ao ponto de distrair seus colegas, é a chave para entender os temas de seu trabalho: Sufjan Stevens é um Verdadeiro, devoto, genuíno cristão.
Felizmente, Stevens passa longe do estereótipo comum dos evangélicos, cujo mandamento favorito, depois de “você deve contrariar Roe V. Wade” é “você não deve fazer pessoas ricas pagar impostos”. Louvado seja pelas guerras culturais bipartidárias.
Liberto da tirania dos tympanis e do fardo dos fagotes, Stevens deixa que sua própria voz e um único violão aconteçam. O resultado são 12 hinos neo-folclóricos simples, mas elegantes, com sinceridade de olhos arregalados e grande coração e um extraordinário senso de compromisso tão forte quanto um vício – o tipo geralmente reservado para punks e fanáticos religiosos.
E é precisamente isso que torna a faixa-título do disco tão marcante e assustadora. Para Stevens, o inferno é tão real quanto a cidade Ypsilanti, o pecado – original ou não – é um assunto incrivelmente sério, e o apocalipse é mais do que apenas o assunto dos filmes de Michael Bay. Melhor se acertar com Jesus, porque pode começar a chover fogo e sangue e anfíbios a qualquer momento e você não vai querer ficar para trás.
O ouvinte primeiro encontra esse antagonista assustador conhecido como “Deus” na metade da estranha e lenta canção que Stevens canta: “Ele é o Senhooooooor” em um falsete abalado e perturbador. Ao contrário de quase todas as outras músicas já cantadas por Stevens, sua voz aqui carece das qualidades belas e esteticamente agradáveis que ajudam a suavizar as arestas psicológicas em alguns dos trabalhos mais sombrios do artista – como “Seven Swans”.
Em vez disso, as explosões de desespero de Stevens se rompem e se despedaçam como o narrador avisa, em uma voz que espelha a terrível carnificina que Deus trará a este planeta: “Se você correr … Ele o perseguirá … Se você correr”. Enquanto isso, essa cena horrível e inevitável se desenrola sobre uma progressão de acordes extremamente inteligente que trilha do primeiro “Se você correr” em uma nota menor até se transformar, quase imperceptivelmente em uma nota principal mais reconfortante no segundo “Se você correr”.
E, no entanto, a progressão nunca acaba realmente, em vez disso se repete entre acordes tristes e doces, provando que não importa o quanto se tente escapar da ira e misericórdia alternadas de Deus, o pagão está condenado a queimar. E o resultado é o mais próximo do que um não-crente pode compreender, a alegria e o terror de viver a vida à mercê de um Deus todo-poderoso.
6. Casimir Pulaski Day (de Illinoise, 2005)
As duas coisas mais misteriosas e, portanto, que são alvo de fofoca sobre o enigmático Sufjan Stevens cercam sua sexualidade e seu cristianismo. Assim, os fãs de Stevens com suas mentes literárias acertam a bolada com a faixa “Casimir Pulaski Day”, que explora esses dois temas, e o faz com uma nostalgia linda e evocativa dos acampamentos bíblicos, enquanto homenageia as alegrias adolescentes de trocar beijos durante o verão.
De todas as músicas de Stevens, essa talvez tenha causado mais polêmicas. Seja sobre sua religião ou sua sexualidade. Stevens tem sido mais franco sobre o primeiro item, falando abertamente em entrevistas sobre como sua piedade havia o transformado de um cristão mais tradicional para uma das vagas enumerações pseudo-religiosas sob o gigantesco guarda-chuva da “espiritualidade”.
Mas pouco se sabe sobre a sexualidade de Stevens, já que suas canções frequentemente apresentam narradores de gênero indeterminado que se relacionam com homens e mulheres. Mas a conversa exaustiva sobre esses traços de personagem raramente acrescenta muito às músicas – e talvez até subtraia delas. Stevens vive no mesmo abstrato que Joanna Newsom – sua contemporânea quando se trata de arte performática e poesia multi-instrumental. E se Stevens é ou não “gay” ou “ainda religioso” tem tão pouco peso na capacidade do ouvinte de se conectar com esses lindos e marcantes traumas quanto o debate se Newsom fez ou não um aborto.
Aqui, Stevens não tem muito a dizer sobre o herói da Guerra Revolucionária Polonesa homônimo ao personagem da música. Em vez disso, ele criou uma melancolia íntima para um amigo de infância que morreu de câncer ósseo cheio de dor, e o desejo que contrasta esses sentimentos de pesar intenso com o choque elétrico que se recebeu na primeira vez em que eles tocam outro humano de um jeito meio desajeitado, mas sem dúvidas, sexual. O resultado é uma das canções mais honestas e relacionáveis sobre a infância já escrita – por Stevens ou qualquer outra pessoa – e a rara reflexão artística sobre crianças e o “crescimento” que nunca é tratada como deveria.
5. Impossible Soul (de The Age Of Adz, 2010)
Com a duração de 25 minutos e 35 segundos, “Impossible Soul” é de longe a música mais longa do repertório de Stevens (em comparação, sua segunda música mais longa, “Year Of The Horse”, do álbum “Enjoy Your Rabbit”, que dura 15 minutos). A faixa é a mais confusa e caprichosa do igualmente confuso e caprichoso álbum “Age Of Adz”, e poucos negariam que “Impossible Soul” contém alguns dos momentos mais impressionantes deste ou de qualquer álbum do músico.
Mas é realmente necessário que a canção dure 25 minutos? Não seria suficiente 15 minutos, ou mesmo oito minutos para fazer seu trabalho?
Enquanto “Impossible Soul” é dividida em partes individuais – e cada uma delas poderia se sustentar como canções fenomenais – parte do que torna a faixa tão necessariamente longa são as transições entre elas, que são calculadamente orgânicas, alongadas e não abruptas. A música se transforma em ritmo, humor e instrumentação de forma quase imperceptível, de modo que é difícil dizer que a sonoridade mudou de rumo até que já tenha zero semelhança com o movimento que veio antes dela. Eu duvido que a música teria o mesmo impacto se fosse cinco segundos mais curta.
Isso também porque o arco narrativo da música – do desespero doente ao otimismo desconfortável, até a celebração final exuberante de ter se curado através do som e da visão, com uma grande ajuda de um amante disposto a aturar sua “alma impossível” – exige uma enorme quantidade de tempo e espaço para se sentir convincente para o ouvinte. O fato de que Stevens conseguir mostrar tudo isso sem uma única nota musical ou emocional que soe falsa é nada menos do que extraordinário.
Depois de uma vida de abandono, Stevens só quer o amor de sua mãe – um “amor perfeito”. Mas para Carrie, isso é simplesmente pedir demais e Stevens está sendo egoísta. E talvez a mãe dele esteja certa – ela é a única que está morrendo e, portanto, precisa da ajuda dele muito mais do que a dela. Mas Stevens não vê dessa maneira. “Eu sei que é pequeno”, diz ele, referindo-se sarcasticamente ao apelo de um filho pelo afeto de sua mãe.
O sarcasmo rapidamente dá lugar à aceitação, como Stevens canta: “Parece que eu errei / eu estava correndo atrás de algo que já se foi”. Mas, por mais triste que seja essa percepção, ela oferece uma abertura psicológica para Stevens curar sua mente e corpo. Tudo o que aconteceu foi esse ato de colocar o peso atrás dele; de seguir em frente.
Daquele ponto em diante, a música se torna um suspense, gradualmente lento, enquanto temas musicais e idéias líricas sangram por cada transição entre movimentos para criar uma sinfonia multi segmentada que flui tão perfeitamente como um épico de Beethoven. À medida que o suspense cresce, os floreios eletrônicos do álbum – que até agora soavam frios e alienantes – começam a se aglomerar lentamente em torno de um ritmo de bombeamento no peito que soaria muito bem em um registro do LCD Soundsystem. Enquanto isso, um coro de frases de Stevens como “Não quero sentir dor” – mas, ao contrário do desespero encontrado em gritos de angústia semelhantes em faixas como “Eu quero estar bem”, há uma sensação de força e determinação em sua entrega aqui, sugerindo que o que Stevens sente não é mais apenas um desejo de se sentir bem, mas um grito de guerra – ele grita com a certeza de um líder de torcida.
Lenta mas certeira, a confiança de Stevens continua a se expandir e se intensificar, junto com a música que começa a soar como um confronto sangrento entre as forças do caos barulhento e as do triunfo Antêmio até que finalmente atinge uma massa crítica de tensão e um novo mantra mais: “Segure-se, Suf, segure, Suf…” E então, finalmente, em um dos momentos mais conquistados dentro do repertório inteiro do artista, a batida cai, e o refrão grita: “Um! Dois! Três! Quatro!”.
A partir daí, é puro júbilo musical e lírico:
“É uma longa vida / É melhor se beliscar / Recompor seu rosto / Melhor acertar / É uma longa vida / Melhor você mesmo / Recompor seu rosto / Melhor ficar em pé”.
Em qualquer outro contexto, este final arriscaria soar como o poptimismo de um “chumba-wumba”. Mas ao primeiro colocar os ouvintes para cima, lançando-os na escuridão, e depois convidando-os a levar uma marreta ao coração de Stevens e ver seu conteúdo, o público não pode deixar de confiar neste momento de sinceridade. É isso que faz de Stevens um dos herdeiros mais merecedores do movimento New Sincerity de David Foster Wallace. Para ganhar essa sinceridade, é preciso mais do que simplesmente abrir bem os olhos e expulsar todo o seu cinismo. Só funciona quando artistas nos mostram a escuridão primeiro. Porque, enquanto qualquer um pode ser feliz, exige um tipo especial de força para encarar a morte e o vício, para levantar o véu sobre a merda que regularmente penetra em nossas vidas, para perder tudo. E, ainda assim, encontrar uma razão para confiar, ajudar, amar – e dançar com – o resto da raça humana.
4. Death With Dignity (de Carrie & Lowell, 2015)
O público testemunha algo extraordinário acontecer na primeira faixa de “Carrie & Lowell”, o álbum feito em homenagem a mãe de Sufjan que faleceu em 2012. A princípio, Stevens tem medo de encarar seus sentimentos sobre uma das tragédias mais traumáticas, porém universais, que podem acometer uma pessoa: a morte de um dos pais.
“Espírito do meu silêncio, eu posso ouvir você / Mas eu tenho medo de estar perto de você / E eu não sei por onde começar”.
É uma faixa poderosa, evocativa de um sentimento que é familiar para aqueles que sofreram grandes perdas. Faz sentido que Stevens tenha medo de ficar sozinho com seus próprios pensamentos, que invariavelmente se reunirão em torno de lembranças de sua mãe. Paradoxalmente, ele também tem medo do que acontecerá se ele guardar esses pensamentos para si mesmo – onde, reprimido em seu cérebro, eles com certeza causarão estragos em sua alma. Para Stevens, a criação da “Carrie & Lowell” é mais do que um exercício criativo ou um presente para os fãs ou até mesmo um ato de catarse. É um imperativo emocional e tudo que o artista pode fazer para impedir que seu coração se parta em dois.
O que não é uma tarefa fácil: Stevens não sabe “por onde começar” e mesmo que tenha “medo de estar perto” dessas memórias, as molda na arte popular. Enquanto ele explora essa incerteza, o ouvinte é tratado com uma das melodias vocais de Stevens impecavelmente trabalhadas e inescapavelmente cativantes. Quando ele finalmente muda a melodia, a brusquidão permite um grande potencial dramático, que Stevens usa aqui para enfatizar frases como “Eu perdi minha força completamente” – palavras que sobem a escala para o céu nas costas de seu primoroso e tremulante falsete, como se estivesse se afastando de algum horror indescritível.
Quanto ao evento “extraordinário”? É o ato de Stevens redescobrir ao longo dos quatro minutos de “Death with Dignity” sua força perdida – algo que ele certamente precisará se ele quiser passar por mais 10 músicas de dolorosa introspecção e lembrança. Essa força está na esperança de que Stevens se reúna com sua mãe na morte, da mesma forma que sua doença o trouxe de volta à sua vida após os muitos anos ausentes que ela passou atormentada por esquizofrenia e abuso de substâncias (uma mãe perfeita, Carrie não era). É o tipo de esperança que podemos esperar de Stevens, cujo otimismo aqui e em outros lugares é menos uma fonte alegre de inspiração e mais um mecanismo para lidar com tanta escuridão.
Então, finalmente, depois de repetir, “Todo caminho leva a um fim” com uma mistura de resignação e saudade, Stevens corajosamente se prepara para lidar com a morte de sua mãe. E nesse momento de clímax, a melodia vocal revisita o falsete assombroso de antes, só aqui Stevens canta: “Sua aparição passa por mim” – segurando o “através” em harmonia consigo mesmo e imitando o som que o fantasma de sua mãe faz, pois ameaça derrubá-lo. Nós entendemos agora porque Stevens tem tanto medo dela. Na vida e na morte, sua mãe é uma força da natureza – um vento de furacão que pode simplesmente acabar com ele. Nós também estamos encantados, Sufjan.
3. Flint (For The Unemployed And Underpaid) (de Greetings From Michigan: The Great Lake State, 2003)
A menos que seu sobrenome seja Buffett ou você pertença a alguma outra dinastia corporativa ou política, você provavelmente se sentiu pobre em algum momento de sua vida. Talvez tenha sido na manhã de Natal do ano em que seu pai perdeu o emprego, quando havia menos presentes debaixo da árvore do que se costumava. Ou talvez tenha sido quando você viu um bilhete de sua mãe que estava trabalhando até tarde aconselhando-o a “fazer o jantar” – e ao abrir a geladeira encontrou um pote de mostarda e um pão mofado. E tenho certeza que muitos de nós se sentiram pobres ao sair da faculdade, sem um emprego no momento exato em que se esperava que tivéssemos um, fazendo a triste caminhada até Kroger com um bolso cheio de trocados que você esperava que fosse o suficiente para comprar ramen e cerveja. (Se não, você poderia sobreviver sem o ramen).
Mas nada disso se compara ao desespero e aflição da pobreza documentada por Stevens em “Flint”, a primeira faixa de “Greetings From Michigan”. Saudações, de fato.
Aqui temos um homem cuja vida é dominada tão completa e definitivamente pelo fracasso que quando ele tenta trazer lágrimas aos seus olhos ele nem consegue fazer isso direito – então ele finge. A música tem apenas algumas dúzias de palavras e, mesmo assim, a maioria delas é repetida várias vezes – como um mantra, exceto pelo fato de que quanto mais você repete, mais isso estressa. E então não sabemos muito sobre o protagonista. Ele perdeu o emprego. Ele perdeu o quarto. Ele está morando no carro dele. Como e por que, você pergunta? Eu não sei, pegue um jornal. Americanos costumavam ser pagos para fazer coisas, agora não mais. E nem Donald Drumpf nem Bernie Sanders vão trazer esses empregos de volta – embora eu duvide seriamente que o narrador de Stevens de 2003 vá viver tanto tempo.
O narrador de “Flint” diz que seria certo “morrer sozinho”. Porque uma vez que você perdeu sua casa e sua dignidade, morrer sozinho é a menor das suas preocupações e algo que acontece com a maioria das pessoas. E quem realmente vai se apaixonar por ele nesse estado de coisas? “Usei minhas mãos para usar meu coração”, Stevens canta. Em outras palavras mais RuPaul, é difícil se apaixonar se você não se ama; e é difícil amar a si mesmo se você é desprovido.
Em “Flint”, Stevens deixa sua banda em casa. Em vez disso, há apenas um riff de piano lento e simples e, mais tarde, um coro de tristes trombones. É uma maneira incrível de começar um álbum, mas ao documentar a miséria da vida no Rust Belt, qualquer outra coisa seria falsa.
Então continue chorando sobre o seu ex ou sua avó morta. Sufjan estará aqui sentado em seu carro, tentando pensar se sua vida ainda vale a pena chorar. As chances são de que você nunca se sentiu tão pobre – a menos que você viva em Flint ou Cleveland ou Gary, IN ou … ok, não importa que você provavelmente tenha se sentido tão pobre assim.
2. For The Widows In Paradise, For The Fatherless In Ypsilanti (de Greetings From Michigan: The Great Lake State, 2003)
Antes de Mumford And Sons arruinar o banjo para todos os músicos do planeta*, artistas como Sufjan Stevens fizeram músicas incríveis com eles, e esta é um dos melhores. (*essa é a opinião do autor, hein gente!? tou só traduzindo)
E para complementar esses banjo melancólico, a terceira faixa de Michigan, “Widows In Paradise”, apresenta algumas das letras mais diretas e poderosas de Stevens. Sim, há alguns subtextos religiosos velados aqui. Mas como a maioria de seu trabalho de antes ele saiu como um cristão em “Seven Swans”, esses temas e imagens são sutis e secundários à simples e devastadora equação emocional que está no núcleo da música – que é quando pais e maridos morrem, suas viúvas e filhos órfãos enfrentam uma sensação quase insuportável de perda espantosamente dolorosa.
Esta é uma tragédia universal, claro. Mas a partir do título e do contexto do restante do álbum, podemos supor que as vítimas dessas mortes são os desempregados dos centros de fabricação em decadência de Michigan, enquanto os ciclos de desemprego, depressão, vício e suicídio continuam girando sem sentido enquanto o Congresso desmantela a rede de segurança social e desregula / desonera os ricos para que possam atualizar seus super iates. E enquanto isso se tornou uma das narrativas dominantes na temporada eleitoral de 2016, em 2003 – o que parece séculos atrás – todo mundo ficou muito indignado (ou sanguinário) durante a Guerra do Iraque para perceber que os pais de Ypsilanti estão lutando para manter as luzes acesas.
Mas enquanto esse contexto é importante, Stevens não pretende esclarecer ou surpreender. Seu objetivo é capturar vividamente a devastação total de tragédias indescritíveis. E nesta faixa, ele consegue com eficiência brutal.
“Widows In Paradise” é mais curta e composta de menos blocos do que quase qualquer outra faixa em “Michigan” ou “Illinoise”, mas cada uma é uma excitação emocional. Há o eco cavernoso de várias faixas de reverberação na progressão do banjo secundário. A linha vocal simples, mas assombrosamente inabalável, que se repete através do verso e do coro com um mínimo de mudanças melódicas ou rítmicas, mas com variações cada vez mais pronunciadas de harmonia e intensidade. E a produção imaculada que, durante a ponte instrumental, coloca um espaço claramente discernível entre a trompa, o piano e os vocais sem palavras, enquanto eles se imitam, juntos e sozinhos. Cada elemento esparso é perfeitamente calibrado para atingir o quadrado do ouvinte no coração e deixar para trás um buraco palpavelmente vazio que desejamos preencher – mesmo que nossos pais estejam no final do corredor ou num telefonema de distância.
A música é ancorada por um refrão de Stevens cantando “Eu farei qualquer coisa por você”. Tomado no sentido mais literal possível, o narrador aqui é interpretado como sendo o próprio Stevens, afetado por essas perdas e tentando desesperadamente fazer isso. Algo, qualquer coisa – e mais tarde, tudo – para aliviar a tortura horrível da solidão e da perda sentida por aqueles deixados para trás por seus amantes, almas gêmeas e zeladores. No final, os timorosos gorjeios de Stevens se tornam um gemido terrível e desesperado quando ele grita: “Eu fiz tudo para você” oito vezes – cada um mais impossivelmente desamparado do que antes. A implicação, baseada no uso de Stevens do tempo passado, bem como na entrega supremamente perturbada, é que tudo não foi suficiente – certamente não para trazer esses homens de volta, e talvez nem mesmo para iluminar os cantos dos mundos escuros dessas mulheres e crianças por um breve momento.
Mas uma alternativa – que é, de certa forma, mais poderosa e otimista do que a primeira – é que os narradores são as “Viúvas no Paraíso” que estão lidando com a inimaginável luta de chorar seus maridos e cuidar de seus filhos sozinhas. Isso está mais de acordo com o pensamento de Stevens sobre a música, que ele revelou ao público em um show de 2004 na Bélgica:
Eu percebi que quando nós fomos lá para cima (para Paradise, MI) para jogar um torneio de futebol americano no colegial, eu notei que havia todas essas mães solteiras e mulheres e avós, mas não havia nenhum homem, então eu meio que imaginei uma história em minha mente que todos eles tinham morrido na guerra e que elas eram todos viúvas. Mas elas eram realmente uma comunidade muito feliz e otimista e todas pareciam estar trabalhando juntas, e era como se as mulheres do mundo tomassem o controle. Esta é para as Widows In Paradise.
Muitos artistas podem escrever uma canção “triste” na qual as narrativas e imagens constituem um mar sem fim de desespero. Mas é preciso um verdadeiro astro como Stevens para evocar uma cena igualmente sombria, mas também encontrar uma luz – por mais obscura que seja a escuridão total. E, embora se possa pensar que aliviaria até certo ponto a capacidade de uma tragédia da música, neste caso, o oposto pode ser verdadeiro – porque a escuridão parece ainda mais negra quando colocada ao lado da luz.
1. Come On! Feel The Illinoise! (Part I: The World’s Columbian Exposition – Part II: Carl Sandberg Visits Me In A Dream) (de Illinoise, 2005)
Também conhecida como: aquela sobre a da Feira Mundial de Chicago.
“Come On! Feel the Illinoise” é uma composição estonteante e emocionante que deve surpreender e encantar qualquer par de ouvidos no planeta – isto é, desde que a cabeça entre eles não faça suposições categoricamente negativas sobre músicas com assinaturas de tempo ligeiramente estranhas ou que excedam um máximo de dois tempos. A queixa sobre assinaturas irregulares é comum contra Stevens. Mas ao contrário dos fornecedores do gênero oxymoronic “rock matemático”, que experimentam com as assinaturas de tempo a tendência de confundir “estranheza” por “inovação”, em “Illinoise” Stevens torna o som 5/4 tão natural e confortável quanto “Mary Had A Little Lamb”.
A interação psíquica entre as notas e o ritmo aqui são tão graciosos que o ouvinte mal percebe que a cada medida e a cada semínima extra, Stevens está lentamente ligando a tensão. Ou melhor, nós não percebemos isso até que Stevens – dirigindo o som de uma banda de marcha louca com a precisão de um neurocirurgião – libera essa tensão na marca dos 2:20 na última sílaba de mudança de nota de “Columbiaaaa”, mudando dramaticamente para a mais populista 4/4 assinatura com uma série de enormes sucessos de orquestra em staccato. É um momento glorioso e marcante em uma música.
Tudo o que posso dizer para os pessimistas de Stevens é que é necessário um esforço real para resistir a esses momentos de pura excitação e deleite, que são costurados juntos por sete minutos que passam rapidamente. E coincidentemente, se você olhar além da torcida de “Illinoise” na virada do século e considerar seu subtexto, você verá que Stevens faz um argumento muito semelhante nas letras.
Enquanto Stevens pode soar na primeira audição como uma criança da sociedade excessivamente açucarada implorando a seu pai para deixá-lo andar na Roda-gigante mais uma vez, um olhar mais atento revela a implicação de que a Feira Mundial de Chicago de 1893, como todos os espetáculos, era meramente uma distração boba da morte e dor da existência humana. Qualquer um que conheça a história contada em Devil In The White City, de Erik Larson, e Stevens certamente entende, do lado de fora dos portões do parque, a alegre inovação da exposição deu lugar às duras realidades da vida urbana americana na virada do século. Essas atrocidades incluíram um serial killer que torturou até a morte cerca de 200 mulheres sem chamar a atenção das autoridades, que estavam ocupadas demais para garantir que os investidores ricos não ficassem desapontados com as festividades.
Ainda assim, Stevens também sabe que sempre que a breve janela da história que nos é concedida oferece uma visão de eventos que capturam o fascínio de uma nação, é muito difícil não se deixar levar pela emoção de tudo isso. Claro, é tudo um pesadelo corporativo e consumista. Mas há algo hilariamente americano sobre a insistência da nação de que a roda gigante inaugurada em Chicago naquele ano tenha sido igualmente majestosa como a maior conquista da anterior Feira Mundial em Paris: uma estrutura pouco conhecida chamada Torre Eiffel. Ainda mais hilariante é a noção de que adventos como o Creme de Trigo e refrigerantes, também revelados com grande desenvoltura e significado para os visitantes, representavam as melhores inovações que esta grande nação tinha a oferecer. “Quando os anúncios vêm”, Stevens canta, ele é tão suscetível ao fascínio das conveniências modernas, apesar das “grandes intenções”.
Mas enquanto Stevens não se nega a diversão sentida pelas massas, ele ainda se sente inquieto com a experiência. Em última análise, esses confortos não podem satisfazer seu espírito dolorido, não importa o quão espetaculares os anúncios sejam. Como Peggy Lee colocou, em um refrão que viria a definir a América no século 20, “Isso é tudo o que há?”.
Essa é a questão explorada pela Parte II de “Illinoise”, que é composta de coisas muito mais substanciais do que o mingau instantâneo e a Coca-Cola. Relata como uma noite, depois que o pobre Stevens chorou até dormir, o fantasma do poeta laureado de Illinois, Carl Sandberg, chega em um sonho para castigar Stevens por sua impressionabilidade e ingenuidade. “O que você está fazendo”, o fantasma de Sandberg parece perguntar, “celebrando algum coxo, feira comercializada e ficando todo choroso e nostálgico sobre a América do virar do século?”. Ele tem um ponto: A feira não deu ouvidos alguma era milagrosa de invenção, nem os anos 1900 marcam o nascimento de um admirável mundo novo de compaixão e amor. Naquela época, a humanidade já havia visto “mil séculos de morte”, canta Stevens. E se o século 20 é uma indicação, haverá mais mil – se conseguirmos até mesmo um décimo desse tempo. Ele tem razão: a feira não deu ouvidos a uma época milagrosa de invenção, nem os anos 1900 marcaram o nascimento de um admirável mundo novo de compaixão e amor. Naquela época, a humanidade já havia visto “mil séculos de morte”, canta Stevens. E se o século 20 é uma indicação, haverá mais mil – se conseguirmos até mesmo um décimo desse tempo.
Stevens não tomou exatamente o conselho de Sandberg; caso contrário, não ouviríamos uma música com o subtítulo “A exposição colombiana do mundo”. E suspeito que a razão seja esta: se tudo o que está além do espetáculo é a morte, qual é o objetivo? Por que não aproveitar o espetáculo? Pelo menos as pessoas que morreram no Titanic tiveram uma baita visão antes de morrerem.
“Illinoise” conclui não com algum sermão inspirador ou reflexão sobre o que esta terrível roda de sofrimento humano significa, mas com uma pergunta: “Você está escrevendo do coração?”. Stevens deixa essa questão sem resposta, em parte porque a questão é direcionada para ele mesmo. Mas Stevens também coloca isso ao ouvinte, como uma espécie de teste decisivo para saber se estamos vivendo a vida ao máximo.
Eu sei, eu sei… “Escreva isso do coração” soa como uma adaptação de Nicholas Sparks dos anos 90 estrelada por Susan Sarandon e Natalie Portman como sua enteada problemática. Chavões vazios como “siga seu coração” ou “seja fiel a si mesmo” são tão monótonos e carentes de profundidade quanto são óbvios e clichês, e talvez devêssemos esperar mais de Stevens. Mas eles também contêm uma dura verdade: que depois de milênios passados lutando com as inevitáveis pressões mórbidas deste mundo através de religião ou filosofia ou sexo ou dinheiro ou drogas ou todos os itens, a humanidade aprendeu que as trivialidades vazias do livro “Canja de Galinha Para a Alma” soam como receitas que Stevens ou qualquer outra pessoa pode oferecer para tratar esta doença conhecida como a condição humana.
“Isso é tudo que existe?”. Agora coma seu creme de trigo.