Em seu primeiro disco “Wanderer”, Rafael Witt captura imagens emocionais através das lentes da reflexão
por Cléo Medeiros
O filho primogênito de Hana e Edson Witt tornou-se um cantor e compositor. Seu nome de batismo é Rafael Frederic Vieira Witt. Brasileiro, nascido em Caxias do Sul no estado do Rio Grande do Sul em 1997, Rafael Witt agora, é um viajante do mundo.
Com origens maternas portuguesas e espanholas e origem alemã por parte paterna, compreende-se um pouco mais sobre o humor “mais dark” destilado pelo cantor tanto pelas redes sociais quanto pelos shows intimistas que vem promovendo intitulados de “House Concerts”, um conceito americano bastante utilizado por artistas Folk lá fora, e agora, abraçado por Witt como uma maneira de se aproximar de seu público.
As “House Concerts” são feitas em diferentes lugares dependendo da cidade onde irá tocar. Geralmente um grupo pequeno de pessoas é convidado ou um número restrito de ingressos é colocado à venda. O espaço é alugado na cidade escolhida e cuidadosamente organizado para a recepção do público que consegue ter uma experiência diferente de degustar o show. Isso porque além da música, também são servidas bebidas e aperitivos, justamente para que as pessoas se sintam em casa.
A família Witt se faz presente tanto nos shows quanto no incentivo ao músico. O irmão Rodrigo – quatro anos mais novo -, vive hoje em Lisboa estudando Engenharia Biomédica e o Rafa também foi para a engenharia antes de seguir o caminho da música. Porém deixou os cálculos da ciência exata de engenharia mecânica para trás, para se aventurar pela área de humanas e chegar até o coração das pessoas.
Entre raízes e algoritmos
Os pais, são engenheiros de formação (a referência das engenharias, vem daí) e auxiliam em sua carreira com habilidades que se complementam: a mãe, com seu olhar cuidadoso e organizacional, mediação e produção e o pai com a sua habilidade empreendedora, estratégica e de marketing. Ambos, acreditando no talento inquestionável do filho.
A essa altura você deve estar se perguntando, porque falar sobre a família em uma resenha sobre o lançamento do disco? Pois bem, não há melhor maneira de conhecer um artista, senão compreendendo de que lugar esse artista vem. Quando falo lugar, não me refiro apenas ao local de nascimento, mas sobre todos os lugares e camadas emocionais e psicológicos que constituem esse artista. Sua obra pode ser ainda mais apreciada e entendida como deve ser.
Rafael Witt vem buscando o seu lugar ao sol justamente na era digital, tecnológica e de redes sociais (saudade dos anos 90, diga-se de passagem). Onde muitos artistas preocupam-se com a quantidade de “seguidores” e precisam ser estratégicos ao pensar em vídeos virais para ocupar a cena, embora nem todos tenham o talento e a destreza para isso.
Os artistas atuais precisam se virar nos “59” (um dos tempos estipulado em ”segundos” pelo algoritmo para que os vídeos tenham mais acessos e “curtidas”). E nem sempre contam com uma equipe, às vezes são eles mesmos que gravam, editam, fotogravam, fazem o seu “próprio corre”. Seria o antigo “se vira nos 30”, mas falar dessa maneira já é considerada “cringe” hoje em dia.
Difícil viver na era da “viralização”, onde o sucesso vem apenas pelo anseio de sucesso sem um propósito maior. Por sorte, temos alguns artistas que compreendem que precisam entrar nesse jogo, ao mesmo tempo que estão focados em suas composições, na qualidade de seu trabalho e no legado que querem deixar.
Um Encontro Musical
Conheci o trabalho de Witt justamente em um desses vídeos patrocinados nas redes sociais. Na época, o cara morava na mesma cidade em que eu morava (Caxias do Sul), cantava música Folk (meu gênero favorito) e traçava uma meta de tocar no Red Rocks – o anfiteatro natural mais legal do mundo todo -, situado no Colorado (EUA), onde diversos grupos de música Folk já fizeram registros incríveis. Como eu ainda não havia ouvido falar dele?
Quando entrei em contato, ele já não morava mais na mesma cidade. Procurei por suas músicas pelos canais de streaming e descobri composições gravadas desde 2020. O encontrei pessoalmente em 2023 em uma “House Concert” em São Paulo (SP), na ocasião, um pocket show para convidados.
Todo domingo, ele tem o hábito de fazer “lives” com seus seguidores/fãs tanto para falar de música como de outros assuntos. Um pequeno grupo foi selecionado para assisti-lo ao vivo, e posso dizer, cantou em coro músicas já queridas como “Space & time”, “Maybe Tomorrow”, “Lie with me” e “Fire”, que fazem parte das primeiras composições que foram muito bem aceitas.
Naquela noite eu percebi algo visível na aura do cantor: o seu nítido entusiasmo ao falar de suas músicas antes de tocá-las, a sua gentileza com todas as pessoas que se aproximam por conta de seu som e a sua vontade de ser um artista reconhecido. Um artista brasileiro que optou por cantar em inglês por preferência linguística, de composição e estrutura de versos. E porque, além disso, a música ultrapassa as barreiras racionais da mente.
O primeiro álbum
“Wanderer” é oficialmente o primeiro disco de Rafael Witt. Com lançamento previsto para 18 de outubro de 2024 (dois dias antes de seu aniversário de vinte e sete anos) e tivemos acesso à escuta do álbum algumas semanas antes para essa resenha exclusiva para o Folkdaworld. Foi produzido por Lucas Mayer que já trabalhou com nomes como Elza Soares, Rubel, Scalene e Gustavo Bertoni (solo), Liniker, Criolo e Ney Matogrosso para citar alguns nomes. Isso para que se tenha a compreensão da experiência musical que endossa o conteúdo do disco.
Gradativamente como acontece com muitos artistas, durante o processo de composição e gravação dos álbuns, o trabalho evolui e a qualidade começa a aumentar. Obviamente, além da maturidade, há também o investimento financeiro que proporciona ao cantor escolhas que farão diferença no resultado final, seja de produtores, estúdios, seja de instrumentos e equipe. Talvez por conta disso, os primeiros discos de diversos artistas são menos produzidos e acabam não chegando até a grande audiência, é a velha história do resultado ideal versus o trabalho possível, mas que poderia ter tido um potencial maior.
Para quem já acompanha a carreira de Witt e estiver com o ouvido atento, perceberá o salto de qualidade das composições. E quem ouvir as suas músicas pela primeira vez através de “Wanderer”, sentirá vontade de buscar trabalhos antigos para entender esse percurso natural.
O disco foi gravado com um grupo de músicos competentes e que souberam identificar a sonoridade que o artista queria imprimir nas canções. O resultado ampliou a característica Folk-indie-pop das músicas de Rafael Witt e trouxe ainda camadas melodiosas antes desconhecidas devido ao acréscimo de novos instrumentos como banjo, mandola e acordeom além de uma atenção especial à parte percussiva que ganhou destaque em diversas músicas.
A Jornada de um Andarilho
A capa de “Wanderer” (andarilho|viajante), é o resultado de um vídeo capturado pelo próprio Rafael em uma viagem com o pai, para uma mini tour pela Europa, mais precisamente em uma estrada da Suíça. A imagem, que posteriormente recebeu o tratamento adequado de Rodolfo Marcondes, responsável pelo artwork do álbum, mostra uma bela paisagem com uma estrada que aponta para uma direção entre árvores, neve e casas: o objetivo é seguir, continuar.
O disco aliás, inicia com a faixa-título e “Wanderer” começa essa aventura pessoal de Rafael Witt como se fosse a sua própria oração para seguir na estrada, para percorrer novos caminhos, para abraçar as suas escolhas. Ele quer ir, quer chegar e quer voltar com as próprias pernas. O andarilho que habita nele, inicia a sua viagem emocional. Ele quer ser levado até histórias para serem contadas depois e algumas que já viveu, começa a contar aqui.
A inteligente analogia utilizada em “Sci-fi” quando inventa um personagem, um cientista que descobre outro planeta e segue os seus sonhos e seus instintos, os quais poucos acreditavam, para na verdade falar sobre si mesmo, sobre os riscos, sobre as turbulências durante o processo, é um dos pontos altos do álbum. Isso porque, essa melodia carrega um pop quase “assoviável” que fica grudado na sua cabeça durante horas por conta de um refrão que foi acertado em cheio.
Chris Martin do Coldplay cantaria facinho para uma multidão. Aliás, o Rafa tem feito uma cover inusitada para a canção “Yellow” calcada no banjo durante as “House Concerts”. Vale lembrar que vez por outra, ele faz releituras de música pop com uma roupagem muito singular, caso de “Toxic” de Britney Spears (isso mesmo!). Em seu canal no Youtube, há diversos vídeos disponíveis, inclusive, a qualidade dos últimos vídeos está cada vez melhor e além de gravações especiais dos shows, a “Wanderer Sessions” já mostra boas doses da atmosfera do disco.
Profunda e emotiva, “Dont cry” chega na verdade para marejar os olhos do ouvinte. Composta num momento de indecisão sobre permanecer ou desistir da carreira, ela convida a refletir, qualquer pessoa que já tenha passado por um momento de dúvida. Rafael fala para si mesmo: “Não chore, pois você descobrirá que foi feito para ver o mundo e mal arranhou a superfície”.
Reflexões e Conexões
Apostar na carreira musical é um caminho difícil a ser percorrido, há pressões de várias as partes, além da mais cruel: o olhar para seu interior na ânsia de busca por respostas. Essa canção tem duas participações muito especiais e algumas conexões entre os artistas. A primeira delas, é um verso escrito em português por Duca Leindecker, músico também do Rio Grande do Sul que hoje segue em carreira solo, porém fez parte da banda Cidadão Quem e do projeto Pouca Vogal com outro gaúcho, Humberto Gessinger (Engenheiros do Hawaii).
Witt que já abriu um show de Leindecker no Teatro São Pedro em Porto Alegre/RS, falou sobre a dificuldade que estava tendo para incluir um verso em português na letra de “Dont Cry”, tempo depois recebeu o verso escrito por Duca e que casou com a história contada. É o único trecho cantado em português no disco todo.
O cantor Tiago Iorc por exemplo, além de já ter gravado músicas do Duca, também iniciou a carreira cantando somente em inglês assim como o Rafael e mais precisamente no disco “Zeski” de 2013, flertou com o Folk bucólico e ainda lançou no mesmo disco, gravações novas e regravações em português, algo em comum. Outra participação em “Dont Cry” é do talentoso Gustavo Bertoni (Scalene), ainda que com uma presença mais tímida, fazendo o coro em um dos versos, Bertoni empresta a voz para essa canção tão intima. Gustavo aliás, também trabalha com o mesmo produtor, Lucas Mayer e inclusive já falamos por aqui sobre o lindo disco “The fine line between loneliness and solitude” de 2020, uma parceria entre ambos.
Não apenas de reflexões o disco é feito, “Endless Love” abre espaço para a sedução como John Mayer o faria “Alimenta-me com suas palavras de sabor arrebatador, calma comigo, eu imploro…perca o ritmo e cubra o meu corpo com desejo”. Esquentou o clima para que o autor comece a falar sobre os desejos carnais de nosso dia a dia.
Já em “Reality”, o próprio Witt já revelou que ele soa como um Johnny Cash brasileiro, isso porque ele canta de uma maneira que o seu timbre de voz remete ao man in black. Para gravar essa canção, o produtor pediu que ele acordasse as 8hs da manhã, não se alimentasse, não falasse e fosse direto para o estúdio gravar. E assim ele fez. O resultado alcançou o esperado com essa letra que fala sobre amor. Diria ainda, que “Reality” também remete a canção “Words” do americano Gregory Alan Isakov e que percebo nuances da sonoridade de Gregory como fonte de inspiração para o compositor. Será que Gregory também acordou as 8hs para gravar?
Uma Carta de Emoções
Por falar em composição, eu acredito que um dos grandes triunfos de quem compõe é poder ser o interlocutor de uma história, sem que essa história seja exatamente sobre si. Em “Christmas Time”, o Rafael sobe alguns degraus como compositor, ao cantar como se fosse a sua avó materna (em primeira pessoa) falando com a sua mãe. A letra que é uma espécie de carta da avó para a mãe, trata nas entrelinhas de assuntos pessoais que causaram sofrimento, é sobre ausência, é sobre “perdoar o imperdoável”.
Essa suposta carta, é o que Witt imagina que a avó diria, mas que nunca fora dito: “Minha vida tem sido benção e maldição, sob minha pele meus ossos se dispersam, eu nunca amei nada tanto, como você, minha querida, meu universo”. Versa lindamente. É a história de uma mãe buscando conforto em sua filha, preenchendo o espaço de quem partiu e não voltou. É a história de uma filha que também precisa ser confortada por sua mãe. É um afago terapêutico.
A avó materna, Dona Dedê, participa inclusive de alguns vídeos dele nas redes sociais e o carinho especial pelo neto músico, tem raízes em sua própria história: “a vida nem sempre é uma festa”. E muitas vezes escondemos as nossas aflições através do humor. Confesso, que foi a música que me fez chorar na primeira escuta do disco, pois há uma forte carga emocional. Que o tempo seja sempre capaz de curar as pessoas que amamos.
Retratos de Superação
Minha favorita do disco, no entanto, chama “Never Mind”, a penúltima faixa de “Wanderer”. Conquistou o meu coração com a melodia e com a história da letra. Conquistou o meu coração com a ideia de “volta por cima” emocional. Conquistou o meu coração por confrontar toda e qualquer pessoa que impede de nos sentirmos seguros com as nossas escolhas.
Conquistou o meu coração porque aborda um assunto que está tão presente em nosso cotidiano, que é sobre as pessoas não pensarem no peso de suas palavras antes de dizerem às outras – é sobre a real empatia. Conquistou o meu coração porque ela dialoga comigo e também me faz pensar em seguir em frente. E quando Witt grita ao fundo: “Eu quero aprender a curar o espírito, caminhar com meus próprios olhos, observar o sol, a luz da manhã, eu quero aprender a sentir o mundo”, eu sinto que aqueles gritos também me pertencem.
O disco “Wanderer” é uma espécie de registro fotográfico do momento em que Rafael Witt estava. Fotografias registradas entre 2021 e 2024 como se a vida naquele instante fosse capturada através das lentes da reflexão e cada imagem remetesse a uma parte importante que foi vivida.
Rafael revelou imagens em preto e branco e opacas e caprichou nas brilhosas e coloridas. Mesmo que a sonoridade tenha um pé na melancolia, como talvez grande parte da música Folk tenha, ao conhecer o Rafael pessoalmente, o ouvinte perceberá que a alegria habita nele, que inclusive transformou o bullying que sofria no tempo de escola, em força para viver da música, já que a música sempre foi um de seus mecanismos de defesa. A alegria é o seu escudo.
Eu tenho profunda admiração pelos cantores que são compositores de sua própria música e letras. Afinal, uma letra de música carrega o tópico crucial sobre determinado assunto e a partir disso, abre inúmeras caixas de diálogo a respeito. Não é fácil sintetizar as histórias que vivemos. Em “Wanderer”, Witt aposta nas emoções humanas e se há algo sobre o que se pode escrever e ser atemporal é sobre as nossas emoções, afinal em algum lugar do mundo, em alguma parte de nossas vidas, nossas histórias e vivências se entrelaçam. E às vezes, a maneira como podemos ajudar o outro é compartilhando uma música em forma de abraço.
Compartilhe “Wanderer” com as pessoas importantes de sua vida. Mais do que abraçadas, elas terão a chance de ouvir um artista que está apenas começando a arranhar a superfície, pois definitivamente ele foi feito para ser do mundo.