Um novo canto das raposas para um tempo de pandemia

por

Hoje, em tempo de isolamento social, música, cinema e literatura surgem como possibilidades para ressignificar a experiência de confinamento. Um fenômeno amplamente observado nos últimos meses é justamente a presença de tons mais coloridos, mesmo em artistas cuja a identidade é marcada pela agridoce melancolia, como são os rapazes do Fleet Foxes – e vale destacar que, caso você esteja lendo esse texto no futuro, 2020 realmente foi isso tudo (e mais um pouco) que os livros apresentam.

Há um tempo atrás escrevi aqui para o blog uma resenha um tanto maluca sobre o álbum “Crack-Up” (2017), que marcou a volta dos Fleet Foxes de maneira triunfal. Um disco cheio de ambiguidade: sombra e luz, dor e alegria, solidão e a necessidade de ser com o outro. Mas agora, no ano mais estranho que a minha geração já experimentou, o compositor e vocalista dos Fleet Foxes, Robin Pecknold, entrega um clima de verão e companhia no disco “Shore”.

A faixa inicial abre o disco com a doce voz de uma participante inusitada. A jovem uwade entrou no radar da banda por suas performances no Instagram, e o carismático Pecknold não apenas a convida para uma participação, como também entrega a incrível missão de cantar a música de abertura. Esse gesto já diz sobre a conexão que o disco reverbera. Uma fã, longe da fama mas cheia de talento, é vista, valorizada e convidada a construir junto. Isso não é demais? Para aqueles que, como eu, vez ou outra arranham cantar alguma coisinha, bate até aquela sensação do “um dia pode ser você”.

Shore é um álbum que convida o ouvinte a sair um pouco de casa e caminhar por paisagens litorâneas, com a beleza do mar, o afago da brisa e um sol que aquece. Um dia belo sempre produz aquele toque de nostalgia, e “Shore” reproduz esse sentimento de alegria acompanhada de uma dor da beleza que passou. Não poderia ser diferente, pois os Fleet Foxes carregam uma sonoridade que, por vezes, soa desconectada dos aspectos do tempo, rompendo barreiras e caminhando para ganhar o lugar que é reservado aos clássicos.

Queria poder comentar faixa a faixa, mas o espaço – e o tempo – não me permitem. Por isso, para você que ainda está por aqui, te convido a ouvir com atenção duas músicas muito especiais que, em grande medida, ilustram o tema de Shore. A primeira delas é a faixa 2, “Sunblind”. Além de ser uma homenagem cuidadosamente articulada pelo vocalista Pecknold para as principais referências da banda, é também a própria expressão do processo criativo dos Foxes. Um fim de semana em uma cabana no campo, instrumentos emprestados e amigos reunidos. Contado cada pegada que seguiram para a construção de uma identidade que já não se preocupa com autenticidade, pois os Foxes, reproduzindo Salomão, sacaram que não há nada de novo debaixo do sol.

As referências são formativas, e como já disse em meu texto anterior, Pecknold leva um tempo perdido em si mesmo, e agora, de volta ao jogo, as fronteiras de gênero musical (ou formato) parecem cada vez mais sujeitas ao jogo de subversão. E na faixa “Going-to-the-Sun Road” somos completamente surpreendidos pela ousadia e genialidade. Com seus trechos finais em português, o Grande Tim Bernardes conclui a faixa com versos que beiram o surreal. A parceria é brilhante, e Tim Bernardes – um dos maiores da música brasileira contemporânea – não apenas contribui com vocal, mas fica responsável por todo o arranjo, provando mais uma vez que a arte extrapola a distância e carrega a potência de ser mais que uma resposta ao tempo, mas também uma ponte que conecta vida, realidade e sonho.

“(…)O começo de tudo e as nuvens que agora se afastam. Mostrando um caminho que está sempre lá…” 

Ouçam Shore. É belíssimo!