Flag Day – Bandeiras hasteadas até o topo das emoções
por Cléo Medeiros
O ano era 2011 e Eddie Vedder – vocalista do Pearl Jam – estava a se aventurar em seu segundo álbum solo, o “Ukulele Songs”. Um desafio para qualquer músico, criar canções em um
instrumento com tão poucas cordas como o Ukulele. Mas Vedder, sendo o artista nato e
genuíno que é, conseguiu tornar o álbum impecável e ainda chamou nomes como Glen
Hansard e Cat Power para participações especiais. Seu grande feito solo, havia saído anos
antes, em 2007, com o excelente “Into the wild”, a trilha sonora do filme de mesmo título (Na
natureza selvagem) em uma parceria com o diretor Sean Penn. E onde quero chegar com essa
introdução?
Sean e Eddie, trabalharam juntos em “Into the wild” enquanto Glen Hansard e Cat Power
participaram do disco “Ukulele Songs” e agora, essas quatro personas, estão novamente juntas
na trilha sonora do filme “Flag Day” lançado em 2021, outra produção de Penn onde ele dirige
e atua, narrando a história real da jornalista Jennifer Vogel que relatou em seu livro Flim-Flam
Man: the true story of my father’s counterfeit Life, a relação com o seu pai e a descoberta dos
crimes que ele cometera. A perpectiva do filme é sobre o ponto de vista da personagem. E
para tornar este ambiente ainda mais familiar, Sean Penn contracena com a sua própria filha
Dylan Penn que interpreta a Jennifer e inclui seu filho Hopper Penn como irmão da
personagem, enquanto Eddie Vedder chama a sua garota, Olivia Vedder para cantar em duas
músicas da trilha, com destaque para a canção principal “My Father’s Daughter”. Precisa de
algo mais?
Não bastasse toda essa trupe de gente talentosíssima reunida, a película que foi gravada com
uma estética old com a imagem levemente granulada, aproxima o expectador dessa micro
história, que apesar de real e conhecida nos EUA naquela época (1992), de maneira intimista
narra as memórias de uma filha com o seu pai preenchendo os espaços antes de tornarem-se
vazios e todo o declínio emocional que rompe a ilusão dessa relação desde a sua infância até
tornar-se adulta. Com uma honestidade brutal, o foco do filme perambula entre as facetas do
pai vigarista, sua manipulação dos acontecimentos e seus delírios reais, o abandono paterno, a
difícil tarefa de uma mãe que fica com as crianças, as dívidas e os vícios e que mais tarde tapa
os próprios olhos sobre o suposto abuso de seu novo companheiro com a própria filha,
retratando fielmente aquele velho modelo falido de família americana. Até que mais tarde a
relação mais madura entre pai e filha, os crimes e mentiras dele e a mudança de rumo e
conquistas pessoais dela entram em colisão e por um determinado momento ambos escolhem
caminhos diferentes na bifurcação da estrada.
A trilha sonora foi composta em grande parte por Eddie, Glen e pela Cat Power que assinam
letras, arranjos e melodias com uma típica atmosfera folk. A presença feminina de Cat, como
se fosse a versão da voz da personagem, entrelaçam sonoramente os primeiros momentos da
película. Três canções respectivamente cantadas por Power dão início a história sonora: a
abertura fica com “Dream” (a última canção do disco), uma balada violão, piano e voz onde ela
narra um sonho que teve com o pai “Eu tive um sonho, eu estava chamando o seu nome. Eu
tive um sonho com você, eu estava implorando para você ficar […] eu tive um sonho com você,
estávamos rindo de tudo. ” Já “I am a map”, traz uma espécie de diálogo contraditório em tom
nada brando: “Eu me sinto violento, me sinto inocente. Estou velho, estou ficando mais velho.
Eu sou um mapa (foda-se tudo!), você vive conforme as regras (foda-se tudo!) […] Eu não sou como um mapa (me ensinou bem, foda-se!), Não posso seguir suas regras (me sinto inocente,
fodam-se!), eu refiz meu passado, (me sinto violento fodam-se).” E para finalizar a trinca, surge
“I will follow”, calcada em uma guitarra que conduz o ouvinte até a linda voz de Cat Power que
quase sussurra e até torna a letra borrada.
Hansard, aparece logo depois, com “As You Did Before” e leva para o filme a sua maestria
poética e o seu DNA impresso em seu timbre de voz, sua maneira falada de cantar e os acordes
intimistas de seu violão. Essa é a única canção em que Glen assina sozinho no disco, já que a
grande maioria delas, canta ou toca junto com Vedder. “Tender Mercies” talvez seja o maior
exemplo dessa parceria que deu certo, belíssima, iniciada ao som de piano e a voz de Glen,
para que em seguida Eddie Vedder atravesse a porta cantando com o poder de suas notas. E
quando cantam juntos no trecho final, os gritos de Hansard revisitam canções do “Once”:
“…Agora estamos ficando sem estrada e espero que você vá embora, além daquela
leve tempestade no ar. Eu me pergunto se você ouviria isso agora, uma tempestade
sem fim vem soando pelo ar. Oh, o que eu disse, nos levou…tanto tempo para
aprender, o mundo está dafundando ao nosso redor enquanto esperamos nossa vez.
Agora estamos acabando, ainda claramente em dúvida, ainda pulando das janelas do
amor. Suas desculpas afetuosas, elas não foram suficientes, não foram suficientes.”
(P.s: algum dia conseguiremos escrever ou falar sobre Glen Hansard sem citar
“Once”?)
Belíssima na voz de Eddie, “Drive” uma regravação soturna de um dos hinos do
saudoso R.E.M, se encaixa perfeitamente na trilha de “Flag Day” quando podemos
compreendê-la até de maneira global, como fica a saúde mental e o senso de direção
das tantas crianças abandonadas pelos pais e o quanto essa falta de proteção e apoio
pode influenciar na vida adulta.
A percussão quase tribal de “Waves” com o Glen na voz principal e Vedder fazendo
backing vocal, é realmente uma onda que leva o ouvinte a lugares inesperados como
se pudéssemos recitar essa letra curta como um mantra ouvindo o piano pontual entre
os acordes de violão. De longe uma das favoritas do álbum.
Em uma das cenas do filme, a personagem Jennifer exclama que o seu pai John Vogel
acreditava que o “Dia da Bandeira” (título traduzido do filme “Flag Day”) era
considerado o dia do nascimento de todos os americanos. Na letra da música de
mesmo nome – escrita em parceria entre Vedder e Glen – eles descrevem imagens de
um desfile do sonho americano e toda a honra exaltada à sua bandeira, não sem antes
fazer uma breve crítica sobre os verdadeiros aniversariantes não estarem tão contente
com a festa em busca de sonhos que muitas vezes são frustrados. O dedilhado do
violão, é uma marca registrada das composições solo de Eddie Vedder que estão cada
vez mais melodiosas e intensas.
Já Olivia Vedder, filha de Eddie, chega doce e tímida para cantar a música que
apresentou o trailer de “Flag day” ao mundo e que para a nossa surpresa, toca apenas
ao subir os créditos finais do filme apesar de abrir o álbum oficial. “Eu sou filha de meu
pai, não importa o que acontecer”, a letra resume o sentimento de Jennifer em uma
balada folkiana que deixa a emoção aflorar a pele e marejar os olhos. Cabe na vida da personagem real, cabe na vida da própria Olivia com Vedder. Ela ainda divide os vocais
com Eddie no esperançoso e comovente pedido por proteção de “There’s a girl”.
“Rather be Home”, composta por Vedder e Hansard e entoada apenas com modulação
de voz por Eddie – assim como ele já fez em “Guaranteed” versão instrumental
presente na trilha de “Into the Wild”, ou até mesmo antes disso em “Arc” no disco “Riot
Act” do Pearl Jam – é como se canalizasse uma mensagem divina que atravessou algum
portal intergaláctico para chegar até o ouvido de nossas almas. Aquele dedilhado por si
só, já é oração pura, para escutar de olhos fechados, postura ereta e contemplativa.
Ficou no repeat por alguns dias.
Sean Penn, mais uma vez conseguiu reunir belas canções para um filme seu e mais do
que isso, juntou Eddie Vedder, Glen Hansard, Cat Power e Olivia Vedder para uma
viagem íntima, lírica e sonora dentro do mundo desses personagens tão controversos
e complexos. A música e seu poder de contar histórias e nos fazer sentir parte daquele
universo sensível que até então não nos pertencia. Queridos diretores de cinema,
aprendam com Sean a como envolver o espectador com imagens e sons e a escolher as
vozes para tal feito. Nenhum outro quarteto, teria feito em “Flag Day” uma trilha
sonora que coubesse tão sensivelmente na narrativa. Quais canções você escolheria
para a sua? Na dúvida, converse com Sean Penn.